Por: Camyle Macatrão
Ser jornalista não é fácil, isso eu aprendi na prática logo no início da minha graduação. A rotina é exaustiva: escreve, apaga, corrige, conversa com a fonte, grava, edita, publica, e o ciclo se repete de novo e de novo. Ouço pelos corredores da universidade que a parte mais difícil do jornalismo é o contato direto com as pessoas. Eu não concordo; para mim, essa sempre foi a melhor parte. E digo isso com propriedade, já que em um ano e meio de jornada jornalística, tive o prazer de conhecer e relatar, em minhas notícias e reportagens, a história de pessoas incríveis que me ensinaram tanto. É um tipo de aprendizado que não se ensina nas universidades: é na prática, na rua, no contato com as pessoas que a verdadeira aula acontece. E acredito que esse é o papel do bom jornalista: ser um eterno aprendiz.
Desde o início da minha graduação, as pautas mais estranhas caem diretamente no meu colo. A primeira foi sobre o cemitério do meu bairro. Infelizmente, ou felizmente, não fui lá para entrevistar os “moradores”, apenas os funcionários. Depois disso, foi uma sucessão de pautas aleatórias: rezadeiras, trancistas, bailarinas e até mesmo donos de hotéis para cachorros eu entrevistei. No segundo período, um professor que não é jornalista falou para a turma: “O jornalista é o historiador do tempo presente”. Aquilo me marcou. Esse mesmo professor, com sua sagacidade e bom humor, foi indiretamente o responsável pela primeira vez que experimentei essa aula prática, na rua, com o público. Ele pediu que fizéssemos uma reportagem sobre alguma manifestação cultural da cidade. Meu grupo e eu pensamos por horas sobre o que iríamos contar. Afinal, apesar de não ser uma cidade tão grande, Imperatriz é rica em cultura. Optamos por falar da Umbanda, uma religião de matriz africana presente na cidade, mas muitas vezes escondida e restrita. Na reunião de pauta, ele não gostou da ideia e engavetou a matéria, não por preconceito, mas pelo fato de sermos imaturos e inexperientes demais para lidar com uma pauta tão sensível. Odiei isso. Afinal, quem gosta de ter sua principal ideia negada? Hoje eu entendo suas motivações, mas na época fiquei irada. Eu queria ser a historiadora do tempo presente, como ele mesmo disse, registrar esse grupo, conhecer aquelas pessoas, mas não aconteceu. Optamos, então, por um caminho mais seguro: falar sobre as fundadoras da cidade, as freiras. Iniciei a produção da reportagem acreditando fielmente que seria um trabalho comum e que eu não iria gostar, até porque não fui eu quem escolhi. Seria apenas mais um trabalho da faculdade.
Foi então que, em uma tarde ensolarada de terça-feira, meus três colegas de grupo e eu saímos em busca das freiras da cidade. A primeira parada foi na Escola Santa Terezinha, a primeira escola da cidade, e a única até os dias atuais que é coordenada por freiras. Fiquei nervosa; nunca tinha conversado com uma freira na vida. Mas elas nos receberam com sorrisos calorosos e nos explicaram com calma seu estilo de vida, sua rotina, hábitos, e a função que exerciam na escola. Calmas e serenas, responderam a cada uma de nossas perguntas e depois nos direcionaram para um dos professores da escola que, assim como elas, nos tratou igualmente bem. Ao final da entrevista, ele nos deu um livro autografado que contava os 100 anos de história da escola. Esse foi o primeiro “mimo jornalístico’’ que recebi de um entrevistado. A segunda parada foi na Vila João XXIII, um lar para doentes de hanseníase liderado por freiras. Lá, eu não recebi mimos físicos, mas recebi carinho e afeto das freiras e pacientes, e esse foi o melhor presente que eu poderia receber. No terraço do lar, rodeados por gatos, árvores grandes e flores bonitas, pude encontrar paz e ar fresco no meio do caos urbano. Com uma conversa longa e prazerosa, nos contaram a história de suas vidas e das pessoas de quem cuidam. O que era pra ser um trabalho universitário tornou-se uma lição de vida.
Nessa mesma época, alguns dias depois, na disciplina de outro professor, fomos desafiados a produzir uma reportagem voltada para o Dia da Consciência Negra. Cada grupo ficou com uma pauta e, como era de se esperar, fiquei com a mais distinta entre elas: falar sobre cabelos afro, suas curvaturas, tranças, etc. Meu grupo e eu buscamos diversos salões especializados em cabelos afro na cidade, mas somente um nos recebeu. Assim como da outra vez, saímos numa tarde ensolarada em direção ao salão. Eu sabia que seria uma pauta boa e estava ansiosa, só não esperava que fosse tão prazerosa. Ao chegarmos lá, o ambiente era claro e acolhedor, com desenhos inspiradores nas paredes e até mesmo lanchinhos na recepção. A moça que estava no balcão logo se revelou como uma das donas do local e nos contou a sua história e a do salão. No final da sua explicação, disse: “Estou vendo que seu cabelo é cacheado. Senta ali na cadeira, você vai receber uma hidratação”. Fiquei radiante. Nunca alguém em nenhuma entrevista tinha sido tão gentil. Demorei até um tempo para raciocinar que estava recebendo algo tão especial. Assim, uma entrevista que deveria durar no máximo trinta minutos se estendeu pela tarde inteira e início da noite, regada a lanchinhos e uma boa conversa. Uma semana depois, retornei ao salão, dessa vez sozinha, para acompanhar. Foi a segunda vez que recebi um mimo jornalístico.
No semestre seguinte, na matéria de gêneros jornalísticos, a professora propôs que a turma fizesse uma notícia sobre algo local e que estivesse em alta no momento. Dessa vez, não foi o grupo que escolheu a temática, mas sim um sorteio. Minha dupla e eu estávamos nervosas com isso, afinal, como já mencionei, as pautas mais difíceis e diferentes sempre caem no meu colo. Porém, quando a professora puxou o papelzinho e saiu “reforma de Bíblias”, suspiramos aliviadas. Pensamos que não seria uma matéria complicada de produzir. Ledo engano: foi uma das mais difíceis do semestre.
A dificuldade começou ao tentar encontrar as fontes adequadas para a matéria. Precisávamos de duas pessoas que realizassem esse trabalho e de algum consumidor, alguém que já houvesse reformado sua Bíblia. Foi então que, através de uma amiga próxima, faltando apenas uma semana para a entrega do trabalho, encontramos nossa primeira fonte: a dona da Editora Estampa. No dia seguinte, minha dupla e eu fomos até a editora, um local pequeno, porém repleto de histórias, e falo isso tanto no sentido figurado quanto literal. Em cada canto que se olhava, havia livros e mais livros. A dona, Gizelda, nos atendeu sorrindo e, antes mesmo que fizéssemos as perguntas, ela já estava explicando sua história. Ela nos mostrou as Bíblias que já havia reformado, as técnicas que utilizava e até algumas que havia ganhado. Além disso, nos passou o contato de uma compradora recorrente, uma senhora que envia Bíblias todos os meses para reformar na editora. Ela as manda reformar e doa.
Após essa entrevista inicial, retornamos dois dias depois, porém dessa vez para conversar com nossa segunda fonte, uma senhorinha muito simpática que nos contou os motivos pelos quais manda reformar tantas Bíblias todos os meses. Em nenhum momento das entrevistas anteriores nós havíamos registrado esses momentos em fotos, então, no dia seguinte à entrevista, tivemos que retornar novamente à Editora Estampa para fotografar o local e o processo da reforma. No entanto, dessa vez foi diferente: Gizelda nos mostrou o passo a passo da reforma da Bíblia, as tintas que utiliza, e as técnicas na prática, como a serigrafia, uma técnica milenar aplicada nas Bíblias. Ficamos fascinadas com a técnica. Acredito que o fascínio tenha sido refletido em nossos olhos ou em nossas expressões, porque minutos depois ela nos presenteou com dois bloquinhos com nossos nomes escritos em serigrafia dourada. Voltamos pra casa com um sorriso de orelha a orelha e redigimos tudo que aprendemos nesses dias de entrevista, buscando sempre ser o mais fiel aos fatos e aos principais temas tratados. No entanto ainda faltava uma fonte, essa foi a mais difícil, passamos o fim de semana inteiro procurando alguém na cidade que reformasse bíblias e estivesse disposto a nos conceder uma entrevista, foi então que na segunda de manhã, as vésperas da entrega encontramos por meio de um anuncio aleatório, nossa terceira e última fonte, a equipe da livraria teológica nos recebeu com carinho e respondeu todas as nossas perguntas. Ao final da visita, nos despedimos com a sensação de missão cumprida. Tínhamos em mãos as informações que precisávamos para concluir a matéria. Após a entrega, a correção e a publicação, nossas fontes nos enviaram mensagens agradecendo o carinho na notícia.
Aprendi pela experiência que o jornalismo é um lembrete de que, apesar dos pesares, as pessoas ainda conseguem ser gentis. Em nenhum momento pedimos algo aos nossos entrevistados além da verdade dos fatos, no entanto, eles nos entregaram muito mais do que isso. Sentiram-se tocados a retribuir algo que, para nós, é tão simples como escrever uma notícia ou reportagem. Acredito que esse é um dos prazeres de ser jornalista: impactar a vida das pessoas e ser impactado de volta. Escrever sobre isso, sempre buscando a verdade dos fatos, é um prazer simples, porém valioso. Saber que seu trabalho é relevante, que aquelas pessoas se importaram com você e com o seu trabalho o suficiente para agradecer em forma de afeto, é algo especial. Nem todo mundo pode dizer que sua profissão faz a diferença na vida das pessoas, que amplia vozes que muitas vezes não são ouvidas ou são caladas. Mas o jornalista pode. E isso é um benefício que não tem preço. É muito mais do que trabalhar com notícias; é estar na rua, investigando, procurando e contando histórias que fazem a diferença.