“Quem pode dizer quem eu sou, sou eu”: A experiência de Amanda Tupinambá na Universidade Federal do Maranhão

Estudante de Direito, a indígena relembra sua trajetória acadêmica

Repórteres: Ketcia Freitas, Isabelly Mendonça e Gabriel Antunin

Fotos: Arquivo pessoal da entrevistada e Ketcia Freitas

Amanda Tupinambá com adereços indígenas.

 

Amanda Tupinambá, 22 anos, é artesã e aluna do quarto período do curso de Direito, na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Foi criada com os pais em um povoado chamado Cocal, que faz parte do interior do município de Cururupu, no estado do Maranhão. Um território multicultural que abriga a existência de culturas como a indígena e quilombola.

Com 14 anos, Amanda percebeu a necessidade de buscar acesso à educação em outra localidade. Para lutar por seus sonhos e objetivos, se mudou para a capital do estado, São Luís, onde cursou o ensino médio com muita dificuldade, até ingressar na universidade, inicialmente para o curso de Design.

No terceiro período de Design a artesã teve sua matrícula cancelada após a universidade entender que ela não era oficialmente indígena. A instituição avaliou que o território em que a acadêmica nasceu não era demarcado como terras indígenas e a sua etnia, Tupinambá do Estado do Maranhão, foi analisada como extinta.

Na entrevista, Amanda comenta sobre sua trajetória na UFMA e como seu processo foi difícil por não ter uma etnia reconhecida. Atualmente a jovem faz parte da União de Acadêmicos Indígenas do Maranhão (UNAI), participa do Coletivo Levante Tupinambá do Maranhão e do Coletivo de Povos Livres do Maranhão. Há 3 anos também integra movimentos referentes aos povos indígenas que ocorrem em Brasília.

 

Imperatriz Notícias: Como tem sido sua experiência no ambiente acadêmico desde o ingresso no curso de Design?

Amanda Tupinambá: Eu entrei na universidade primeiro no curso de Design. Cheguei a cursar três períodos na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), porém, ocorreu uma situação dentro da universidade, um caso de racismo institucional em que cancelaram a minha matrícula, alegando que eu não sou indígena por conta do meu território, que não é um território demarcado. E por conta da minha etnia que é Tupinambá do Estado do Maranhão, que de acordo com o Estado e com a comissão da universidade que estava avaliando na época, é uma etnia desconhecida, até então dada como extinta.

Eu precisei entrar na justiça pela Defensoria da União. Enfrentei cinco meses de processo fora da universidade. Perdi o semestre, perdi também meus direitos enquanto estudante, perdi bolsa, a carteirinha do Restaurante Universitário e a carteira da passagem de ônibus.

Durante esses cinco meses que eu fiquei fora, comecei a frequentar muito a Defensoria e me identificar com a forma que as pessoas me olhavam. Mas todo mundo na Defensoria gostavam de mim, eles torciam para que meu processo desse certo, que eu conseguisse voltar para a universidade. O juiz deu a liminar pedindo que a UFMA me reintegrasse e me desse todos os meus direitos. Dentro do curso de Design, no período em que eu voltei, eu já não estava sentindo aquela vontade de cursar. Eu já estava com aquela vontade de tentar um curso diferente. E aí por conta da afinidade que eu tive, tentei Direito. Só que eu não fazia ideia de como seria, eu achava que ia ser muito mais complicado porque já tinha um processo. Meus pais até falaram “mas minha filha, vai enfrentar aquilo tudo de novo, entrar na justiça”, e eu falei que o que tinha que enfrentar, eu iria enfrentar. Eu tive que ter muita coragem, porque eu nunca tinha entrado na justiça, nem ninguém da minha família, não sabia de nada sobre meus direitos.

Passei para Direito na turma 2020.1. Desistido do Design eu precisei também desistir do meu processo, já que ele era para voltar para o curso de Design, então não ia ter nexo continuar com o processo se eu não ia continuar no curso. Eu desisti também de toda uma luta, todo o processo que me traria futuramente uma indenização por danos morais e materiais que eu sofri dentro da universidade.

Quando eu fiz a matrícula no curso de Direito, abri um processo também na Defensoria para que não houvesse nenhum impedimento por parte da comissão por causa da alegação de que eu não tenho território demarcado. Meu nome não está na Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Já foi uma grande luta conseguir fazer a minha matrícula. E foi um processo de desconstrução comigo mesma e para a comissão, que até então me julgava como fraudulenta, como fraude de cota, como se eu tivesse me passando por indígena.

É muito difícil para mim porque eu não moro com os meus pais, eu não tenho bolsa, eu não tenho nenhum incentivo, eu moro sozinha, eu tenho que estudar e trabalhar para me manter.

 

IN: De que maneira você se sentiu durante o processo contra a universidade?

AT: É um sonho estar na universidade, porque as pessoas de onde eu vim não sonham alto, mas eu sempre me permiti sonhar. Agora estou aqui e sou a única da família que tá na Universidade Federal, que está estudando e que já fez várias viagens para participar de encontros. É uma vitória o que tem ocorrido.

Tudo que aconteceu comigo dentro da universidade foi como se o sonho que eu estava construindo tivesse sido derrubado. Eles queriam que eu desistisse. Várias pessoas desistiram também. Quando fui para Brasília em 2019 participar do Congresso Internacional de Povos Indígenas da América Latina (CIPIAL), meu processo estava acontecendo e participei de uma palestra sobre “Justiça do branco e justiça do índio”. Dois estudantes indígenas do Maranhão vieram me relatar que tentaram entrar na Universidade Federal do Maranhão e que passaram por muitas dificuldades, porque tem inúmeras questões com critérios que eles cobram. Eles não conseguiram e foram para a Universidade Federal do Pará (UFPA), estudar em outro estado, porque lá é mais fácil para ingressar

 

IN: Na UFMA você teve alguma dificuldade em relação aos seus colegas?

AT: Muita. Não só com os colegas, mas com os professores. Eles já sabiam sobre o processo e que eu não podia mais assistir aula no Design. Cheguei a ser expulsa da sala de aula por causa disso. Eu queria assistir como ouvinte uma aula, só que o professor alegou que ele tinha recebido ordens superiores e que eu não poderia assistir, se não prejudicaria todos os meus colegas. Então, passei por essa humilhação, todos os meus colegas viram e tiveram atitude, interviram. No momento em que saí da sala, acho que foi setenta por cento dos alunos saíram junto comigo. E foi bem bonito.

Foi bem sofrido na época. Também aconteceu de um professor pedir para tirar os meus adereços. Na época eu queria mesmo usar as minhas coisas, usar meus brincos e colares, então ia para a universidade pintada. Assim, as pessoas sabiam mesmo quem eu era. Já que a universidade estava com essa atitude racista, então eu queria mesmo me mostrar.

 

IN: Mas atualmente, no curso de Direito, a sua situação está melhor?

AT: Sim, no curso de Direito eu tenho os desafios que são os professores conservadores, as questões também do próprio Direito, ter que estudar e aprender sobre as coisas que condenam a gente. É bem complicado e difícil, mas é um ato de resistência estar lá, assim como tem pessoas negras que estão também no curso de Direito e que sentem a mesma coisa. É muito difícil, é complicado para nós que não temos bolsa, que não tem incentivo, que não tem os pais por perto, em comparação com uma parte dos nossos colegas que têm um incentivo dos pais, que tem o prato de comida na mesa todo dia, que tem todos os livros que precisa, que tem internet. Então tem uma grande diferença, principalmente nessa questão de não ter tempo de estudar de fato como gostaria, porque tenho que trabalhar, tenho que me manter, pagar as contas e vou fazendo como dá.

 

IN: Muitas vezes nós somos exemplos para pessoas que a gente nem sabe, que recado você deixa para as pessoas de origem indígena que também querem se inserir no ambiente acadêmico?

AT: Meu recado é, sonhe alto. Se visualizem no cargo, se visualizem nesse espaço. É só acreditar, tentar e buscar. Também é bom saber dos seus direitos, porque sempre tem um grupo que vai tentar te derrubar. Como aconteceu comigo na questão da comissão sobre minha etnia, se eu fosse de uma outra etnia que fosse aldeada eu teria mais facilidade de entrar, mas como eu não sou de uma etnia que não é reconhecida por eles, eu tive toda essa dificuldade. Então imagina a quantidade de pessoas indígenas que nem chegam a tentar entrar por conta disso. É só acreditar, enfrentar e não ter medo. Precisei ter muita coragem para olhar na cara dessas pessoas e dizer: eu sou, e eu quero ver quem vai dizer que eu não sou, quem pode dizer quem eu sou, sou eu.

Registro da entrevista online com Amanda Tupinambá.

 

Entrevista produzida para a disciplina Técnicas de Entrevista e Reportagem (2021.2), ministrada pela professora Nayane Brito.