“Isso ainda não é visto como profissão”: Raimunda Rodrigues em última entrevista sobre vida de quebradeira de coco

Repórter: Maria Francineide Carvalho Aguiar

Fotos: Maria Francineide Carvalho Aguiar

 

Raimunda Gomes da Silva, ou somente Dona Raimunda, como é popularmente conhecida, ex-quebradeira de coco, tinha 78 anos quando concedeu esta entrevista, na semana passada, para o Imperatriz Notícias. Ela faleceu hoje e este pingue-pongue foi sua última entrevista oficial.   Aposentada, e à primeira vista uma mulher simples, do campo de estatura baixa, corpulenta e de traços definidos.  Mas é só iniciar a conversa para se ver uma mulher forte, politizada, que conhece bem a sua realidade e sabe que deve lutar para conseguir mudá-la. Nunca estudou, mas é líder nata, de visão política.

Dona Raimunda ficou conhecida por sua luta na defesa dos direitos das mulheres extrativistas, as Quebradeiras de Coco babaçu. Essa luta trouxe grandes resultados, como a Lei do Babaçu Livre, que proíbe a derrubada de palmeiras de babaçu, e permite que as quebradeiras possam extrair o fruto das palmeiras mesmo em propriedades privadas. Ajudou a criar a Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio (Asmubip); a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Tocantins (Fetaet) e a Secretaria da Mulher Extrativista do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), da qual foi titular por dez anos.

Nasceu em Novo Jardim (MA), filha de agricultores pobres, em uma família de 10 irmãos. Casou-se aos 18 anos, mas, em meio a uma relação difícil, decidiu abandonar o marido 14 anos depois e criar sozinha os seis filhos, trabalhando como lavradora. Na sua constante migração à procura de serviço, chegou ao Bico do Papagaio, na comunidade de Sete Barracas, em São Miguel do Tocantins- divisa entre Pará, Tocantins e Maranhão. Venceu a peleja e se transformou em animadora e catequista da comunidade.

Em 1983, um novo padre chegou a São Miguel para fermentar de vez a nascente militância de Raimunda. Era o padre Josimo Tavares, assassinado três anos depois por fazendeiros e autoridades do Bico do Papagaio. Nessa altura, a quebradeira começou a ganhar mundo denunciando o crime contra o religioso e atuando na defesa das cerca de 400 mil mulheres que passou a representar.

Protagonista de um documentário produzido pelo cineasta Marcelo Silva em 2006, onde fala sobre sua vida e das companheiras de babaçual. Dona de vários títulos e prêmios nacionais e internacionais, dentre eles, prêmio Nobel da Paz em 2005, o título de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal do Tocantins (UFT) em 2009, em 2013, recebeu Diploma Mulher-Cidadã Guilhermina Ribeiro da Silva, da Assembleia Legislativa do Tocantins e em 2017 recebeu o diploma Mulher-Cidadã pela comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados em Brasília-DF.

Nas rugas que lhe acrescentam uns 30 anos ela carrega uma vida ordinária, à qual, à custa de muita batalha, acrescentou um “extra”. Quebrando coco babaçu – e protocolos. Sempre tem na ponta da língua uma cantiga das quebradeiras, do beira-rio das lavadeiras.

Hoje, Raimunda está em seu segundo casamento, com o também aposentado Antônio Cipriano, e adotou seu sétimo filho, Moisés, órfão de um líder sindical assassinado por fazendeiro na década de 1990. Devido à idade avançada e as doenças a comete, dona Raimunda estar longe do ativismo. O seu nome ecoa por todo o Brasil, é considerada uma das mulheres mais simbólicas no estado do Tocantins por sua garra, luta e determinação.

Perguntamos a senhora dona Raimunda sobre sua luta pela valorização das quebradeiras de coco, título e prêmios conquistados e o fim de seu ativismo como quebradeira de coco.

 

Imperatriz Notícias: A senhora é conhecida por defender a causa das mulheres extrativistas. Hoje, esses direitos estão sendo mais respeitados do que antigamente?

 

Dona Raimunda: Sim, estão. Mas olha, é na luta, defendendo. Hoje temos a Lei do babaçu Livre, mas tem que fazer respeitar a lei, porque a lei foi criada no Estado e no município, e mesmo assim continuam derrubando coco.

 

IN: E o que tem sido feito para defender o babaçu?

 

Dona Raimunda: O que você imaginar, a gente fez. Agora, nesses últimos tempos, a gente tem lutado através dessa lei. Antigamente a gente fazia mutirão, entrava na frente de trator, denunciava. Hoje a gente está denunciando em cima dessa lei.
Mas depois da denúncia, os caras são multados, pagam a multa e depois fazem de novo. Eles botam veneno nas palmeiras. A chuva chega, os animais bebem da água com o veneno, a gente come os animais…

 

IN: Quem faz isso? 

 

Dona Raimunda: São os donos da terra, os fazendeiros. Eles acham que para criar o gado tem que acabar com o babaçu.

 

IN: E como ficam as mulheres que trabalham nessa atividade? Elas conseguem sustentar família com o babaçu?

 

Dona Raimunda: Agora melhorou, porque tem Bolsa Família, elas recebem Bolsa Escola. Melhorou muito a condição, até mais do que as que querem entrar na quinta dos fazendeiros. Aquela atividade muito pesada diminuiu depois que elas começaram a receber essa ajuda de custo, salário maternidade, essas coisas. Por causa dessa assistência social do governo, a situação está melhorando. Melhorando, não, esta dando pro pessoal ficar lá um pouco mais, pra ir sobrevivendo. A gente sabe que não é o suficiente, está muito longe de ser suficiente, mas que pra calar a boca das pessoas que não conhecem os seus direitos, isso dá.

 

IN: A senhora foi a primeira mulher a ser presidente do sindicato dos extrativistas. Como foi essa experiência? Os homens te respeitavam?

Dona Raimunda: A gente não tinha para quem se queixar, então o jeito era criar o sindicato do trabalhador rural. E depois a gente criou o movimento de mulheres dentro do sindicato. Os companheiros sempre me respeitaram, mas às vezes tem uma pessoa que é respeitada, mas outras não são. Você tem que fazer com que a sua categoria seja respeitada. E por isso nós criamos Associação de Mulheres e Secretaria da Mulher dentro do sindicato, dentro do Conselho Nacional dos Extrativistas. Fomos criando essas associações para lutar para que os companheiros respeitem o direito dessas companheiras. Hoje já tem muita companheira consciente dos seus direitos, da sua vida, de ser mulher.

 

IN: As quebradeiras já conseguiram algum resultado com essa luta?

Dona Raimunda: Aqui na região a gente conseguiu a questão da moradia. Isso para nós foi uma conquista muito grande. Quem construiu foi o governo, federal e estadual, mas foi por causa da nossa luta, cobrando no dia a dia. Até foi feito um filme o vídeodocumentário “Raimunda, a quebradeira”, do cineasta Marcelo Silva, e o governo viu a situação das quebradeiras de coco. Eu queria que elas tivessem mais acesso à saúde, aos estudos, tivessem uma moradia melhor, melhor qualidade de vida, porque isso ainda não é visto como profissão e dificulta na hora de aposentar  .

 

IN:“Raimunda, a quebradeira”, esse título do documentário em que a senhora é protagonista a que se deve?

Dona Raimunda: O nome do documentário é resultado do título de doutor honoris causa que recebi da Universidade Federal do Tocantins (UFT) em 2009 por conta de minhas lutas e história.

 

IN: Vejo que a senhora já ganhou bastantes títulos e prêmios ao longo de sua vida, o que mudou de lá pra cá?

Dona Raimunda: Não mudou nada, continuo da mesma forma, vivendo do mesmo jeito. Agradeço por os títulos conquistados (risos).

 

IN: Em 2017 a senhora foi agraciada com o diploma Mulher-Cidadã pela comissão de Defesa dos Direitos da Mulherda Câmara dos Deputados em Brasília-DF, a que se deve esse reconhecimento?

 

Dona Raimunda: Por ser mulher, por ter contribuído para o exercício da cidadania na defesa de direitos da mulher e nas questões de gênero.

 

IN: Hoje a senhora não exerce mais sua profissão por conta dos problemas de saúde que enfrenta, ainda tem contato com as demais quebradeiras?

 

Dona Raimunda: Sim. Eu só as vejo, quando vem aqui me visitar. Eu já não enxergo mais, estou completamente cega dos dois olhos, devido Cataratas e a diabetes, é difícil eu sairde casa.