Histórias de superação se misturam na feirinha do  Bom Sucesso

Brenda Marques e Lauanny Alencar

Feirantes Audeniza, Edinelia e Marisa compartilham décadas de experiências

Monta barraca, organiza as mercadorias, limpa o suor da testa. O céu, uma tela cinzenta, manda  avisar que no bairro do Bom Sucesso, cidade de Imperatriz, a maioria ainda dorme. O barulho é pouco, não alcança as casas silenciosas, mas vem de um lugar com o costume de acordar cedo. “No domingo, saio às 4h da manhã, pra vir pro serviço”, diz a feirante de 54 anos, da barraca de galinhas, Maria Audeniza de Carvalho Ferreira, ou dona Denúzia. Já faz 35 anos que ela repete essa mesma rotina na Feirinha.

Feirantes organizam suas barracas no domingo, ao nascer do sol (foto: Carlos Daniel Cosme Silva)

No domingo, período de maior fluxo da feira, é comum ver pessoas chegarem antes do sol nascer. Afinal tudo deve estar montado até as 6h30, é quando a clientela acorda e vem comprar. “Estou trabalhando constantemente, mas é algo que gosto de fazer”, compartilha a feirante e costureira Edinelia Costa Barro. Com 57 anos, ela e o marido já não disputam lugar para vender, pois têm o próprio ponto.

“Não tem quem me tire o sono da beleza. Ele é sagrado”, declara a dona da barraca de verduras, Marisa Ferreira Madeira, 57 anos. Apesar de acordar às 5h aos domingos, para ela, que trabalha  todos os dias, o meio da semana é mais tranquilo. Saindo de casa apenas às 8h, a comerciante diz que às vezes é uma das últimas a chegar. “Eu sou a atrasada da feira”, afirma, com humor. Mesmo com o “aperto” dos boletos, Marisa não “sacrifica” o seu descanso.

Com décadas de história, as três viram juntas o crescimento da feirinha, cada uma de sua barraca. O tempo, um velho companheiro, às faz lembrar de uma época diferente. Antes do movimento fazer parte da rotina, quando acordar cedo para organizar as mercadorias nem sempre era costume.

Antes do começo

Ednelia tem décadas de experiência como comerciante e costureira (foto: Brenda Marques)

“Hoje em dia, as moças, quando casam, já querem uma casa montada. Eu não tinha nada, só uma cama pra dormir, um fogão pra cozinhar e um armário pequeninho”. Órfã de mãe com 1 ano de idade, dona Edinelia foi adotada por uma família em São Mateus, no Maranhão. Veio para Imperatriz aos 6 anos, em 1973, tempos depois se casou e deu início ao sonho de constituir a própria família. Mas começar algo, como bem sabe, raramente é fácil.

“O aluguel em Imperatriz era muito caro”, relembra Edinelia, que morava com a mãe e os sobrinhos. Com o marido ajudando nas despesas da sogra, mudar parecia inviável. Encontrou a solução em uma casa de CR$ 15 mil na rua São Vicente de Paula, Bom Sucesso. “Naquela época, era como R$ 150 de hoje”, explica. Convidou os sogros, a cunhada e os sobrinhos para morarem juntos, enquanto o marido trabalhava no garimpo. Após a compra de mercadorias no “grosso” feita por ele, um acordo foi firmado: ela faria render. “Daqui vou multiplicar. Vou vendendo e repondo, e com o lucro vamos comprando o que não tem”.

Na rua Raimundo de Moraes, a um quarteirão de distância, outra história se desenrolava, afinal, dona Denúzia chegava ao bairro. Nascida e criada em Presidente Dutra, Maranhão, ela chegou em Imperatriz, aos 16 anos, para estudar. Dois anos depois, casou e se estabeleceu na hoje conhecida “Rua do Peixe”. Por recomendação de uma amiga, ela e o marido montaram uma barraca de laranjas e melancias. “Ela disse pra mim: ‘Vocês dois não tão trabalhando, são novos. Bora pra feira, começar’. Aí eu disse: ‘Bora’.”

Mesmo após 35 anos, Denúzia desenvolve a mesma rotina todos os dias (foto: Brenda Marques)

O que começou como uma barraquinha de frutas para Denúzia e a venda de mercadorias para Edinelia, resultou na realização de muitos sonhos. “Tudo o que temos hoje, nossa chácara, nossa casa, veio do dinheiro da feira”, reconhece Denúzia, orgulhosa. Com o lucro, Edinelia e o marido pagaram o aluguel e sustentaram a família até quitar a propriedade. “Assim começou minha vida na feira”, conclui a costureira. Ambas nunca tiveram vergonha de como começaram, mas nem todas as barracas contam a mesma história.

“Eu pensava que trabalhar na feira era algo que se fazia de último caso”, admite Marisa, dona da barraquinha de verduras. Antes de se tornar feirante na rua Quintino Bocaiúva, há 20 anos, trabalhou como vendedora no centro da cidade. Começar na feira veio da necessidade de criar as gêmeas Rafaela e Gabriella, mas não foi uma ideia que abraçou de imediato.

Marisa ensaca as verduras sorrindo, relembrando o passado e as suas escolhas (foto: Brenda Marques)

A vergonha de que algum “conhecido” a visse foi rapidamente substituída por algo melhor: a realização de ter o próprio negócio. A possibilidade de criar as filhas enquanto gerenciava seu tempo transformou sua visão. “Eu trabalho para mim, tudo o que eu faço é meu”, ressalta. O controle sobre seu destino e a segurança de construir algo próprio foram decisivos. “Mesmo aos poucos, você está trabalhando para você”, aponta, satisfeita.

Crescimento e histórias

“Todo domingo chegavam mais duas, três barraquinhas. Quando a gente percebeu, estava desse tamanho”, recorda Denúzia. Com barracas como de galinhas e peixes tomando o lugar, a ferinha ganhava forma. “O [líder comunitário] Pedro Ambrósio sempre anunciava na ‘Voz’: ‘Vamos procurar trabalhar na feira. Vamos botar essa feira para aumentar’”, comentou Edinelia, nostálgica.

O crescimento desenfreado trouxe novos desafios, como a disputa por espaço em uma feira de repente lotada. “Era uma luta arrumar um canto pra colocar um carrinho de mão que fosse”, destaca Edinelia. As poucas áreas disponíveis e a competição constante levaram a um crime, que Denúzia lembra bem. Um homem foi esfaqueado. “A gente não viu quem furou, mas chamaram a ambulância e levaram ele”, contou.

Outros conflitos movimentaram a rotina dos feirantes. Como Vanuza, uma figura conhecida, que desentendeu-se com um senhor da vizinhança. Naquele dia, a moradora de rua lançava pedras em sua direção. Ele reagiu, empurrando-a contra a calçada. “A gente achou que ela tinha  morrido, mas não. Foi pro Socorrão e voltou depois de um mês”, relembra Marisa. Acrescenta que mesmo ferida, Vanuza encontrou forças para ameaçá-lo. “Depois disso, a gente fala que ela tem umas dez vidas”, acrescenta bem-humorada.

Entretanto, o alto movimento resultou em mais que conflitos: trouxe melhorias para o bairro. Como o conserto do “buraco” na rua de Denúzia, que dificultava o tráfego dos clientes. “No dia do asfalto foi uma festa”, revive. Acrescenta que uma colega feirante, para comemorar, fez um bolo do antes e depois. “Ela fez um todo quebrado e outro todo arrumado”.

A grande circulação resultou na valorização da região, como apontado pelo geógrafo Celso Cruz em sua pesquisa. Sua monografia, “Comércio informal de feiras como alternativa econômica para o município de Imperatriz-MA: uma observação a partir da Feira do Bom Sucesso”, defendida em 2015 para concluir o curso de Graduação em Geografia, na então Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), afirma que no local havia uma “grande especulação imobiliária”. Denúzia reflete e compartilha que eram tempos mais animados, com a feira em seu auge. “A gente sente falta disso, muito mesmo”.

Pandemia e Adaptações

“Era pouca gente na rua. Eles vinham, compravam e já voltavam. Sempre com máscara e álcool em gel”, diz Marisa. O cenário vivo e movimentado foi trocado por outro, mais vazio e melancólico, em 2020 e 2021. “A pandemia matou a feira, praticamente. Só estão hoje os insistentes”, reconhece Edinelia. Onde a agitação deu lugar ao medo, as duas feirantes decidiram ocupar com outro sentimento: determinação.

Marisa não deixou de vender em sua barraquinha, um dia sequer, apesar da situação. Dona Edinelia, que além do comércio trabalhava com costura, viu a oportunidade de vender máscaras, em meio ao caos. Junto a uma colega, que teve seu ponto fechado, começou as confecções. “A gente fazia as máscaras, e o marido dela as entregas”.

Denúzia, que precisou adaptar o seu negócio à nova realidade, adotando também a entrega a domicílio. “Ligou, eu mando a galinha!”, declarou, animada. A ideia, explica, era algo que já fazia para os clientes fiéis, então bastou formalizar o serviço. No entanto, mesmo com a segurança reforçada, usar sempre a máscara não eliminava a preocupação. “Eu saía por que tinha mesmo, mas era com medo”, confessa.

No fim da pandemia, apesar das perdas e do baixo fluxo, as três conseguiram manter as atividades. O que não foi a realidade da maioria dos feirantes, admite Denúzia. “O pessoal que entrou comigo já não tem mais”. Ela completa que, apesar do começo cheio de possibilidades, sente que o fim não é um futuro tão distante. “Posso ver a feira diminuindo a cada domingo”, lamenta.

Preocupações e Preconceitos

“Antes, a feira era um sonho realizado. Terminava o dia, eu estava com o bolso cheio de dinheiro, meu marido também, e pagávamos as contas. Hoje, não dá”, afirma Edinelia, com pesar. O baixo fluxo, além de afastar os que partiram, prejudicou os que ficaram. A costureira é uma dessas pessoas, que hoje se refere ao lugar como “feira da ilusão”.

“Quem vem de fora, pagando frete ou gasolina, muitas vezes sobra mercadoria. Tem que vender a preço de custo, e sai no prejuízo”, admite a costureira. Há quase 10 anos a história era outra, a promessa de lucro para os que se juntassem à feira era cumprida. Celso Cruz relata em sua pesquisa que, na época, as vendas da feira, segundo seu fundador Pedro Ambrósio, chegava à casa dos milhões de reais.

Denúzia, que antes tinha o costume de atender vários clientes simultaneamente, compartilha do sentimento de Edinelia. “A gente chegava 4h, 4h30, tinha gente comprando. Hoje você espera até 9h pelos fregueses”. A visão de pontos vazios pelos aluguéis altos demais, vem afligindo a vendedora a um tempo. Apesar do fim da pandemia, o número de barracas não parece crescer. O problema, como apontam as três feirantes, vai além do fluxo. “Quem é que vai querer, no final de semana, sair de casa às 5h da manhã, pra trabalhar na feira?”, indaga Marisa.

O desinteresse da juventude em se integrar ao comercio local não é uma questão recente. Os  dados apurados por Celso Cruz, há quase uma década, indicam que apenas 25% dos jovens ativos na feira tinham de 20 a 30 anos.

Denúzia acredita que o problema é reforçado pela visão preconceituosa das pessoas acerca do seu trabalho. “Eu acho que eles pensam que o feirante é menor do que os outros”, expõe. Mesmo criando os filhos e sobrinhos na feira, destaca que nenhum possui interesse no serviço. A baixa escolaridade é citada por ela como um motivo que contribui para essa visão. “Quem tá aqui, em  termos de estudo, parou no tempo. São poucos os que conseguem continuar”

Os dados de Celso reforçam a questão educacional comentada por Denúzia. Em 2015, o levantamento revelou que 50% dos feirantes não eram alfabetizados. Dos que possuíam alguma educação formal, 30% tinham o ensino fundamental e 15%, o ensino médio completos. Apenas 5% dos feirantes haviam concluído o ensino superior.

Conquistas e Futuro

“Quando eu entrei eu não sabia somar nada. Hoje eu sei mexer em tudo. Aprendi aqui, trabalhando”, reconhece Denúzia, orgulhosa. Apesar do que as pessoas pensam sobre trabalhar na feira, ela garante que suas maiores conquistas vieram desse trabalho. Sua renda, apesar dos dias fracos, não lhe assusta em nada. Nos finais de semana, afirma arrecadar cerca de R$ 2,5 mil, chegando até a juntar R$ 4 mil em um domingo de vendas.

Edinelia, que construiu sua família com o suor de cada domingo, também é grata à Feirinha do Bom Sucesso. A costura, além do sustento, possibilitou confeccionar os vestidos de casamento das três filhas, além da própria roupa de formatura. “Nós conseguimos um bem muito melhor do que essa casa: Criar nossas três filhas”, expressa, emocionada. O peso dos anos revela o cansaço, e ela confessa que, se tivesse a chance, trocaria sua rotina por um emprego de meio período.

Mesmo com tudo o que vivenciou, Marisa se mostra otimista com o futuro (foto: Brenda Marques)

Marisa, por outro lado, não se imagina mais cumprindo escala. “Aqui é meu, eu venho de manhã, meio-dia vou para casa, almoço e volto pra cá. Eu faço o meu horário.” Quando questionada sobre a renda, ela sorriu e disse não ser um problema. “Eu tiro mais de um salário mínimo, até dois, dependendo da venda.” Como as outras feirantes, espera pela aposentadoria, mas, até lá, continua trabalhando. “O que me faria parar antes?”, ela reflete por um momento. “Talvez ganhar na Mega-Sena”, responde, e se vira para atender o próximo cliente.

Esta matéria faz parte do projeto da disciplina de Redação Jornalística do curso de Jornalismo da UFMA de Imperatriz, chamado “Meu canto também tem histórias”. Os alunos e alunas foram incentivados a procurar ideias para matérias jornalísticas em seus próprios bairros, em Imperatriz, ou cidades de origem. Essa é a primeira publicação oficial e individual de todas, todos e todes.