Uma pessoa, múltiplas identidades: a vida de quem tem Transtorno Dissociativo de Identidade

Por Rayssa Silva

Por muito tempo as pessoas me tratavam como se eu estivesse endemoniada”, diz Raydânia, jovem que sofre preconceito por ter doença cruel

“Minha memória é como um espelho quebrado, que reflete várias partes de mim, mas nenhuma sou eu mesma. Os pedaços estão espalhados de maneira que não consigo organizar, alguns são tão pequenos que não é possível notar o que existe neles. Já tentei consertar igual fazemos com quebra-cabeças, mas sempre faltam peças importantes, que eu não faço nem ideia de onde estão, se perderam ao longo dos anos. Eu literalmente quebro a cabeça tentando entender quem sou. Eu nasci em 1989, mas só consigo lembrar da minha vida, de 2014 para cá”. 

“Como eu me vejo” (imagem: Dania Hutor)

 

É assim que a Dania Hutor, descreve a história, que não é só sua, é dela e de outras três pessoas, o número que ela tem conhecimento até hoje. Roberta, Dania e a mais atual, Lindinha, esses são os nomes das identidades que dividem a mente, o corpo, as memórias, os sentimentos, as amizades e tudo mais com ela. Raydânia foi diagnosticada no final do ano de 2018 com o Transtorno Dissociativo de Identidade, pelo psiquiatra, Antônio Soares Silva, que continua acompanhando seu caso desde a descoberta da doença. 

A imperatrizense passou quase um ano tratando o TDI como se fosse outro problema, por causa da dificuldade do diagnóstico, situação comum entre as pessoas portadoras da doença. Como mostra o estudo realizado na Universidade de Brasília (UnB), pelo doutor em psicologia, Marcello de Abreu Faria, ex-membro regular da International Society for the Study of Trauma and Dissociation, existem muitas falhas no diagnóstico do Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI) que muitas vezes é confundido com outros transtornos mentais e tratado de forma errônea, mas que ocorre em 1,2% da população psiquiátrica geral, sendo tão comum como a esquizofrenia.

A jovem foi registrada no seu nascimento,  com o nome de Raydânia, mas, hoje, não reconhece essa pessoa, que de acordo com ela, foi a sua protetora durante muito tempo da vida. Quando criança, diz ter passado por situações traumáticas, que até hoje não lembra. Para ela, as outras “meninas”, como ela as chama, vieram para protegê-la das maldades que fizeram ela passar. Dania, cresceu em um lar de família tradicional e com seus 6 irmãos, presenciava brigas frequentes entre seus pais, que chegavam a virar a madrugada. Às vezes, conta ela, o seu “pai subia em uma árvore que tinha no fundo do quintal com uma corda e ameaçava tirar a própria vida, caso a mãe o largasse”. Tudo isso, lembra Dania, são apenas fragmentos dolorosos da infância de uma criança negligenciada, já que seus pais não ligavam para seus sentimentos, desejos e emoções.

“É muito difícil conviver comigo mesma”

A estudante relata, muito abalada, que a sua identidade mais atual, a Lindinha, surgiu depois de uma série de abusos sexuais sofridos em 2019. Ela conta que tentou suicídio diversas vezes e foi condenada principalmente pelas pessoas da igreja. “Eles me diziam que era falta de Deus, que eu deveria orar mais e voltar para a casa do senhor, pois eu havia me afastado, outros diziam que era invenção da minha cabeça, que eu só estava querendo manipular, até minha família me deu as costas”, declara Dania com muito sofrimento. 

“Tive que fazer muita terapia com o Dr. Antônio para conseguir aprender a lidar com todo esse sofrimento. Até hoje tem gente que me julga, mesmo sabendo que eu fui diagnosticada por um psiquiatra formado. Me dói muito todo esse preconceito, acham que eu invento tudo isso, já é difícil não lembrar das coisas, ser obrigada a dividir meu eu com outras pessoas e ainda ter que ser julgada por isso”. 

A tentativa de ter uma rotina

Hoje, Dania enfrenta preconceito até mesmo na hora de conseguir um emprego, devido às cicatrizes que carrega no corpo. Tem três filhos, mas não sabe lidar com a situação, por não recordar de como foi para ela ser gestante, ou ter criado cada um deles, pois o seu casamento, no qual ela construiu família, terminou ainda  no período de sua vida em que a Raydânia estava no “domínio”.

Ela usa suas redes sociais, como o Instagram e o tiktok, para falar sobre o seu caso. Até mesmo seu psiquiatra já gravou vários vídeos para ajudar Dania a educar as pessoas sobre a doença.

Dania conta que atualmente está fazendo o tratamento, tomando medicamentos para depressão e ansiedade, terapia e pretende continuar fazendo o acompanhamento até que um dia ela chegue a se entender melhor, entender sua doença e tentar lidar, já que até o momento não existe cura para o TDI.

O que é TDI?

Por muito tempo, o TDI foi conhecido por transtorno de múltiplas personalidades, como afirma o Manual MSD para profissionais da Saúde, termo esse que ao longo das décadas foi se ressignificando devido a especificidade da doença, que antes já foi tratada como esquizofrenia, bipolaridade, transtorno de borderline, e até possessão demoníaca nos tempos medievais.

A pesquisa feita pela UnB  apontou a dificuldade de acessar dados da doença, principalmente no Brasil, justamente pela sua controvérsia clínica. Mas, verificaram que a maioria dos acometidos são biologicamente do sexo feminino, que já passaram por abusos sexuais ou traumas muito fortes na infância, sendo que a maioria é diagnostica apenas, em média, a partir dos 30 anos de idade. 

Atualmente, de acordo com o catalogador do Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde (CID-10), HiDoctor, o TDI é caracterizado por um comportamento em que o indivíduo adota duas ou mais identidades distintas. Sendo que cada uma é uma unidade totalmente integrada e complexa com memórias, padrões de comportamento e amizades. A transição de uma identidade para outra é repentina, nesse caso, podendo ser ou não notada pela portadora do transtorno.