A educação regular nas aldeias deve fortalecer os saberes tradicionais indígenas

FOTO COLETIVA EMILENE site Imperatriz Notícias

“Todos os modos utilizados para perpetuar uma identidade cultural de uma etnia, dentro ou fora das salas de aula, dizem respeito à educação”, analisa a antropóloga Emilene Leite

Para a professora Emilene Leite de Sousa, Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é necessária a valorização de todos os processos de aprendizagem na infância indígena.  A pesquisadora detalhou, nesta entrevista coletiva, as diferentes configurações da infância nas culturas indígena, camponesa e urbana, bem como apontou os objetivos do projeto Saberes Indígenas na Escola, o qual coordena atualmente. A iniciativa valoriza a inserção de elementos da cultura indígena nos processos de aprendizagem nas escolas das aldeias. O projeto conta com uma rede formada por universidades (UFMA, UFT e UFG), Estado e secretarias de educação. A antropóloga é professora do Curso de Comunicação Social – habilitação Jornalismo, da Universidade Federal do Maranhão, campus Imperatriz. A entrevista coletiva, a seguir, foi  realizada com a participação da turma da disciplina de Técnicas de Reportagem (2016.2).

Para a Antropologia, o que é infância e quais as características mais marcantes que acabam diferindo a infância indígena da urbana e da camponesa?

Emilene Leite de Sousa – A ideia de infância é relativa, configurando-se culturalmente, ou seja, cada cultura vai definir quais são os elementos que ela considera interessantes ou que estão vigorando para conceber o conceito de infância. Não existe uma regra geral para definição, por conta disso, na Antropologia nós costumamos falar “infâncias”, no sentido de pluralidade. A infância urbana considera muito a questão da segurança, da aprendizagem e da ludicidade, tanto é que nós reproduzimos a ideia de que “lugar de criança é na escola”. Além disso, as crianças precisam brincar. O brincar, o brinquedo e a brincadeira são aquilo que nós temos que garantir como direito delas. Ainda no contexto urbano, visamos a garantia da segurança dos nossos filhos, por exemplo, ao abrirmos a porta, a criança pode sair correndo para o meio da rua com o intuito de brincar, mas é perigoso por causa do trânsito, do risco de atropelamentos e afins, por consequência, nós prendemos e limitamos essas crianças o tempo inteiro. Em contraste, os indígenas possuem uma característica na criação das crianças, de transmitir para elas o respeito pelo que os mais velhos ensinam. Além disso, a noção de individualidade deles é diferente da nossa. O coletivo se sobrepõe ao individual, então a criança entende que se ela ferir o próprio corpo ou, se por alguma razão, a criança desobedecer e se machucar, ela também estará machucando a coletividade. Por isso, as crianças costumam ir sozinhas para o rio e os pais não se preocupam que elas se afoguem, pois aquelas que não sabem nadar, têm a consciência de não ir para o fundo, e permanecem no raso. Elas sabem dos seus limites e respeitam esses limites. Nesse sentindo, a infância camponesa é muito parecida com a indígena e, em contrapartida, como oposição e em um recorte mais drástico, tem-se a infância urbana que realmente é um modelo muito diferente desses outros dois.

 Você citou que há um processo de configuração de infância a partir de muitas culturas. Sabe-se que no Maranhão existem inúmeras etnias com essas definições culturais diversificadas. Quantas etnias você trabalhou nesse processo de pesquisa?

Emilene Leite de Sousa – O Maranhão possui nove etnias, uma delas, em vias de extinção, são os Awá-Guajá. Eu trabalhei durante três anos e meio, com bolsistas de iniciação científica, com os Tentehar-Guajajara, que foi por onde ingressei nesse universo indígena no Maranhão. Depois, pesquisei um tempo os Gavião-Pykopjê, que é uma variação do povo Gavião e quando iniciei uma pesquisa com os Krïkati tive que sair para o Doutorado. Em seguida, pesquisei a infância das crianças quebradeiras de coco babaçu, o que gerou um artigo meu chamado “Regra de três: uma comparação entre distintas experiências com a infância”, onde eu aplico a regra de três da matemática para retirar um quarto elemento, que é exatamente um estudo comparativo entre três distintas experiências com infância: infância das crianças indígenas, infância das crianças camponesas e das crianças quebradeiras de coco babaçu. Para comparar essas infâncias relativizei o trabalho infantil. No caso das crianças camponesas foi a atividade agrícola, já com as crianças quebradeiras de coco babaçu foi a atividade extrativista e as crianças indígenas Tentehar-Guajajara a participação na produção, já que o termo trabalho infantil não se aplica nesse último caso. Nas aldeias, os espaços e os horários entre crianças e adultos são comuns, não existe uma dissociação. Diferentemente na infância urbana, onde tem-se espaços e horários para adultos e espaços e horários para as crianças. Então, eu buscava um fio condutor e descobri que, na verdade, o que toda cultura procura são meios de socializar suas crianças: Que estratégia criamos para transmitir os valores que nós achamos que são os mais importantes? Isso será respondido através desse fio que termina, quase sempre, na forma de aprendizagem, seja ela escolar ou não. No caso dos saberes indígenas nas aldeias, a aprendizagem é relacionada à participação no processo produtivo, o que nós denominamos de trabalho infantil.

Existe uma carência de dados das organizações e fundações como a Funai sobre a infância indígena no Maranhão. E na literatura acadêmica? Existem muitos estudos sobre a temática?

Emilene Leite de Sousa – Na verdade, há poucos estudos sobre indígenas no Maranhão, há estudos que são clássicos e antigos. Agora, a comunidade não tem se voltado para as aldeias, tudo que você encontra em relação aos povos indígenas no Maranhão é referente aos clássicos da Antropologia que passaram por aqui, como Darcy Ribeiro, autores de São Luís ou professores do Departamento de Antropologia e Sociologia da UFMA/São Luís. Em relação à ausência, eu atribuo primeiro à questão do espaço e distância, pois percorrer o trajeto de São Luís até as aldeias é complicado. Em segundo lugar, fica a inserção de outros atores nas aldeias que tem desestimulado, digamos assim, a atuação de antropólogos. Primeiro porque há muitos missionários ou grupos religiosos que atuam na aldeia e isso gera um embate que é sempre complicado. Nas nossas investigações e pesquisas, observamos que não há um retorno à comunidade de modo aparente, às vezes não existe uma compreensão da importância dos nossos estudos para garantir a perpetuação dos indígenas, para garantir as suas memórias e para que gere neles algum tipo de reconhecimento. Já os grupos religiosos se preocupam mais com ações assistencialistas, de solidariedade, então não temos condições de competir com isso. Por exemplo, nas aldeias próximas à cidade é muito difícil nós conseguirmos uma agenda de visita, pois eles possuem uma programação que é realizada por esses missionários ou grupos vinculados à igreja que ocupam quase todo o tempo.

Entende-se por educação não só o que aprendemos em sala de aula, mas sim sobre todo o conhecimento adquirido. Nas aldeias quais as outras formas de se exercer a educação infantil?

Emilene Leite de Sousa – Tudo que caracteriza infância é aprendizagem, a infância é, por excelência, o momento da aprendizagem para se tornar o adulto Guajajara, Krïkati ou Capuxu, por exemplo. Todos os modos utilizados para perpetuar uma identidade cultural de uma etnia, dentro ou fora das salas de aula, dizem respeito à educação. Agora, tem-se um modelo que se tornou hegemônico que é a educação escolar, voltado para o mercado de trabalho. Nas aldeias a educação infantil é exercida durante a participação nos rituais, na produção de artesanato, pinturas corporais, produção de comidas típicas e na participação nas atividades produtivas e na realização de tarefas domésticas.

Entre outros contextos da aprendizagem, como é caracterizada a ludicidade na infância indígena?                       

Emilene Leite de Sousa – A ludicidade é circunscrita na natureza, não só ela como todos os processos da aprendizagem indígena. Desde o que eles transformam em brinquedos, ou, até na forma de brincar, são processos marcados pelo que a natureza oferece. Então a areia, a mata, o rio e os animais são partes da configuração das brincadeiras dessas crianças. Essa definição torna a infância indígena mais livre, criativa e sensível às questões ambientais que as cercam.

A Resolução n°5, de 17 de dezembro de 2009, estabelece que a educação infantil é opcional nas aldeias. Dessas etnias trabalhadas, você observou a inserção das escolas regulares?

Emilene Leite de Sousa – Sim, na verdade, o Estado e a Funai têm tentado garantir que aquilo que a comunidade entende como sendo educação, seja legitimado. Nós tínhamos uma idéia de que existia educação formal e a educação informal, logo essas terminologias foram aniquiladas, ou seja, percebemos que não deveríamos chamar de “educação informal” uma educação que era diferente da nossa. Então, o nosso papel tem sido de ouvir essas comunidades e, a partir disso, pensar em políticas públicas que garantam que aconteça na aldeia aquilo que eles estão chamando de educação. No primeiro momento estamos nos equivocando quando construímos escolas de alvenaria no centro dessas aldeias, achando que a gente está resolvendo algum problema pela crença de que era importante para eles aprender o que os não-indígenas aprendiam, a solução era oferecer uma educação bilíngüe (garantindo o português e a língua nativa), adicionando o processo de letramento e a numeração semelhante aos nossos. Passados alguns anos, percebemos que se tinha criado um problema, porque os saberes indígenas que eles consideravam como educação e sendo fundamental para eles (os rituais, a produção de artesanato, significado dos cantos) ficaram de fora. Agora a problemática é explicar para eles que não precisam seguir o nosso modelo de alfabetização, mas os indígenas estão tendo dificuldade em abandonar isso, porém fomos nós que impomos essa forma de educação. Há um programa que deve tornar-se política pública que se chama Saberes Indígenas na Escola. Ele é exatamente uma tentativa de mostrar para os indígenas – e, porque não, para nós? – que a escola pode e deve ser um lugar onde os saberes indígenas atuam, e não somente um local onde você vai para aprender a ler e a escrever. O sábio, o significado dos rituais, a história da abelha, do mel, do milho, o artesanato e as pinturas corporais precisam estar na escola indígena.

Como funciona o Saberes Indígenas na Escola?

Emilene Leite de Sousa – O projeto Saberes Indígenas na Escola visa construir redes através da articulação das universidades a partir de regiões. O Estado está trabalhando atualmente com a noção de territórios que chamamos de étnicos-educacionais. A partir dessa noção, de territórios étnicos educacionais, nós construímos uma rede formada pela UFT, UFG e UFMA. Essas três universidades constroem ações, transformando os sábios como o pajé, o cacique, os idosos, os cantores e os professores, que já atuam nas escolas indígenas, em pesquisadores. Então, a ideia é conceder bolsas através da orientação de pesquisadores, parceiros da secretaria de educação/Seduc e o Estado para o auxílio dos indígenas. Por exemplo, o cantor vai para escolar ensinar o canto; aquela que é a melhor cozinheira da aldeia ensina sobre a gastronomia daquele povo e assim por diante. A gente garante essa transmissão cultural dentro da escola, porque a função das instituições é apenas orientar, nós apenas oferecemos a infraestrutura e alguma orientação, mas não interferimos nas pedagogias nativas.

 E como o projeto está sendo implantado atualmente, onde tem funcionado e sido oferecido?

Emilene Leite de Sousa – Nós tivemos algumas dificuldades, principalmente no caso da UFMA, essas dificuldades remetem a questão que você (repórter) fez em relação aos poucos estudos indígenas no Maranhão. O projeto não tinha coordenador, na verdade, havia uma rotatividade muito grande de pessoas em curtos espaços de tempo. Atualmente, eu sou a sexta coordenadora e, por causa dessa rotatividade, o projeto acabou tornando-se inviável. Por consequência desse problema de logística, nós tivemos que devolver o recurso (são gastos com combustível, alimentação para os pesquisadores na aldeia, material de expediente, etc.). Eu assumi recentemente, então esperamos que para 2017 o MEC disponibilize um novo recurso para que sejam realizadas ações entre os Krïkati, Canela e os Gavião.

 

Equipe organizadora da coletiva:  Gabriel Henrique Ferreira Severino, Mariana Fernandes da Silva e

Mauro de Melo Lopes