Por: Renata Sousa Alves
Embarcar em uma jornada de descobertas é sempre desafiador, especialmente quando envolve romper barreiras culturais e pessoais. No meu caso, o desafio veio na forma de um encontro inesperado com o mundo das benzedeiras e benzedeiros, durante a disciplina de Antropologia no segundo período de Jornalismo. Talvez tenha sido ainda mais desafiador porque compartilhei essa experiência com Rita, minha mãe, e Camyle, uma colega de turma. Sim, estudo na mesma sala que a minha mãe, o que sempre rende um olhar curioso dos outros.
Desde criança, sempre fui fascinada por oratória, pelas histórias que meus avós me contavam sobre lendas e saberes antigos. Essa paixão por ouvir e contar histórias se intensificou quando me aprofundei nos estudos de Jornalismo. A jornalista Eliane Brum uma vez disse que, para ser um bom jornalista, é preciso saber escutar. Essa frase me marcou profundamente, e eu a levei comigo quando decidi mergulhar no universo das benzedeiras.
Nossa primeira parada foi na casa de Maria, uma benzedeira de idade avançada, mas com uma vitalidade e uma presença que imediatamente impõe respeito. Sua casa ficava em uma rua amena, e as práticas ocorriam no fundo do quintal. Quando chegamos, Maria estava fumando, o que adicionava uma camada extra de tensão ao ambiente. Seus amigos, que moravam ao lado e estavam no bar, nos olhavam com desconfiança, talvez estranhando um carro desconhecido na frente da casa.
O ambiente, apesar de não muito convidativo, despertava uma curiosidade imensa em mim. Maria, ao perceber nosso interesse, ficou receosa e desconfiada, uma reação que eu rapidamente associei aos preconceitos que cercam essa prática tão antiga. Além disso, havia algumas exigências para entrar no recinto: não podíamos estar menstruadas, ter feito relações sexuais, fumado cigarro ou ingerido bebidas alcoólicas. Confesso que essas condições geraram um certo receio em nós três, um misto de medo e respeito. Mas, acima de tudo, sentia uma enorme curiosidade em entender o que acontecia naquele lugar.
Ao passar pelo quintal, avistamos uma horta repleta de plantas medicinais que, segundo Maria, possuíam poderes energéticos. Reconheci algumas delas, como a espada-de-são-jorge, arruda e alfavaca, plantas que desde pequena aprendi a respeitar pelo poder que lhes é atribuído de afastar o mal e trazer proteção. Maria não fazia promessas de cura, ela era muito clara em dizer que, se suas orações e ervas não resolvessem o problema, o melhor era procurar um médico. Isso me trouxe uma nova perspectiva sobre a prática da benzedura, não como uma alternativa à medicina convencional, mas como um complemento, uma forma de alinhar corpo e espírito.
Já no outro lado dessa jornada, encontramos Seu Pedro, um dos poucos homens nessa arte. A benzedura, como o próprio nome sugere, é uma prática majoritariamente feminina, e encontrar um homem envolvido nesse ofício foi surpreendente para mim. Até o momento, eu nem sabia como chamá-lo: Benzedor? Benzedeiro? De qualquer forma, Seu Pedro nos recebeu em sua casa com uma tranquilidade que logo nos acalmou. Sua residência, como a de Maria, também possuía um quintal onde as práticas eram realizadas. Ele estava sentado em uma cadeira de balanço, e apesar de seus 80 anos, era um homem negro muito bem preservado.
Assim como Maria, Seu Pedro possuía uma horta cheia de plantas medicinais, que ele usava em suas práticas. O que mais me intrigou, no entanto, foi a existência de um quartinho secreto em sua casa, o qual ele rapidamente trancou assim que nos aproximamos. Curiosamente, Maria também possuía um quartinho semelhante, e ambos faziam questão de fechar a porta antes que tivéssemos a chance de espiar o que havia lá dentro. Minha curiosidade, que já era grande, se intensificou ainda mais. O que poderia haver naquele espaço tão reservado? O mistério me envolveu, e a vontade de entender mais sobre essa prática só aumentou.
Esse encontro com Seu Pedro foi tranquilo, mas extremamente revelador. Ele, sendo um dos poucos homens nessa prática, é muito procurado pelos moradores de seu bairro. Sua experiência e calma no falar eram evidentes, e isso fez com que a conversa fluísse de maneira natural. O que mais me marcou foi a forma como ele equilibrava a tradição com o respeito às necessidades contemporâneas. Ele não hesitava em encaminhar as pessoas para um médico, caso sentisse que sua ajuda não era suficiente.
Refletindo sobre toda essa experiência, percebi o quão profundo é o impacto do racismo estrutural em nossas vidas. Eu, sendo negra, mas vivendo em uma sociedade que constantemente reprime nossas raízes culturais, senti um misto de emoções. Por um lado, eu acreditava e respeitava profundamente essas práticas, que sempre estiveram presentes na minha infância. Por outro, uma voz interior, moldada por anos de preconceito e desinformação, me dizia que aquilo era errado. Essa dualidade de sentimentos me fez entender o quanto ainda precisamos evoluir como sociedade para valorizar e respeitar nossas origens.
O que mais me fascinou em toda essa jornada foi a conexão entre minha paixão pela oratória e as histórias que esses praticantes carregam. No jornalismo, encontrei uma forma de estar mais próxima dessas pessoas, de aprender com elas e de amplificar suas vozes e conhecimentos. Documentar essas experiências é essencial, não apenas para registrar o presente, mas para garantir que as gerações futuras conheçam e respeitem essas práticas ancestrais que, infelizmente, estão se extinguindo.
Ao final dessa experiência, saí com uma visão muito mais ampla do que é ser jornalista. Percebi que ouvir é, de fato, uma arte, e que escutar com atenção e empatia é a chave para contar histórias de maneira justa e honesta. Além disso, essa vivência reforçou em mim a importância de questionar e romper preconceitos, de estar aberta ao novo e, principalmente, de respeitar a diversidade cultural que enriquece nossa sociedade.
Maria e Seu Pedro, cada um à sua maneira, me ensinaram muito mais do que técnicas de cura com ervas. Eles me mostraram a força de nossas raízes e a importância de mantê-las vivas. Como futura jornalista, sinto que é meu dever continuar essa missão, registrando e compartilhando essas histórias, para que elas nunca sejam esquecidas. Afinal, como disse Eliane Brum, ser jornalista é, acima de tudo, saber ouvir. E ouvir, muitas vezes, é o primeiro passo para transformar o mundo.