Uma jornalista, empatia e responsabilidade

Por: Ana Luiza Oliveira 

Foto: Pexels.

 Alexandre Maciel, meu professor de redação jornalística, passou um trabalho para produzir uma reportagem. Eu tive muita sorte desse ter sido o primeiro contato real que pude ter com o jornalismo, mas nunca disse isso a ele. Nós precisávamos escolher um tema relacionado ao nosso bairro e a nossa percepção em torno daquele ambiente. A primeira coisa que eu percebi foi que eu não sabia nada sobre o lugar onde eu moro a minha vida inteira, provavelmente porque nunca fui uma pessoa que presta atenção ou se interessa o suficiente pelo espaço a minha volta.

Eu resolvi escolher fazer uma reportagem sobre o restaurante popular do bairro Santa Rita e definitivamente foi uma decisão impensada, eu não estava pronta para o que iria encontrar e lidar durante aquelas semanas. Na primeira vez que eu entrei no restaurante, percebi que não importa o quão consciente e compreensiva você acha que possa ser, quando você não vive, nunca vai entender completamente. Eu nunca havia visto de perto como aquelas coisas podiam ser, porque estar lá é diferente de apenas ler, estudar, imaginar ou ouvir sobre desigualdade social.

O restaurante dizia oferecer 250 refeições diárias no jantar e 500 no almoço, no início, nem passou pela minha cabeça o quão pouco isso era, mas percebi na primeira vez que entrei na fila. Quando ele abria, se passavam poucos minutos e o restaurante já fechava, deixando uma fila enorme de pessoas famintas no sol quente. Durante a minha observação, eu posso dizer que, pelo menos nas vezes que eu estive lá, sequer 200 pessoas entraram naquele restaurante meio dia antes que ele fechasse na cara de dezenas delas com fome e sede no sol quente.

Eu estava tão envergonhada de entrar naquele lugar e pedir para fazer uma entrevista enquanto as pessoas comiam, porque muitas delas vinham do  trabalho e entravam correndo para dar tempo de comer, ou então eram estudantes que estavam prestes a ir para a escola. Tomei coragem e pedi para entrevistar Ana Maria, eu não sabia como falar com aquela mulher por trinta minutos poderia mudar algo dentro de mim pelo resto da minha vida.

 — Qual é a importância do restaurante popular na sua vida? — Eu fiz a primeira pergunta.

Ana Maria me contou que muitas vezes não teve condições de manter a família de cinco pessoas alimentada durante as três refeições diárias. Ela falou sobre a insegurança alimentar que passou naquele período de sua vida, que precisava lidar com as contas do aluguel, luz, água e ainda arcar com as outras despesas tendo três filhos, por isso, um dia podia haver comida em casa, mas a noite, já não sabia o que seria deles na manhã seguinte.

 — No período que o restaurante parou de funcionar, eu não conseguia ir aos restaurantes populares próximos, mas quando ele voltou, era um alívio ver meus filhos indo para a escola bem alimentados, porque antes, não era possível todos os dias — Ela disse com lágrimas nos olhos. Eu senti uma dor tão grande no peito, só conseguia pensar em como devia ser massacrante para uma mãe ver os seus filhos irem para a escola de barriga vazia, e não importa o quanto ela se esforçasse no trabalho, nada mudava isso. — Se tivessem vários desses restaurantes em todos os bairros periféricos, diminuiria a situação lamentável que nós vivemos, onde as crianças deixam de estudar para vender doce no sol quente durante o trânsito o dia inteiro, sofrendo a chance de serem atropeladas e mortas, além de serem constantemente humilhadas por todo mundo. Se elas tivessem o que comer e não tivessem que se preocupar aonde vão dormir a noite, eu sei que elas não escolheriam estar ali.

Eu fui para a faculdade em seguida e não podia parar de pensar em tudo que ela disse, era difícil prestar atenção em qualquer outra coisa. Depois daquele dia, eu não consegui entrar no restaurante apenas pensando na minha nota como fiz nas primeiras vezes. O professor disse que eu precisava tirar fotos de dentro, mas era tão pequeno que as pessoas se esbarravam lá dentro e os cadeirantes precisavam de ajuda para conseguir transitar.

No momento que peguei o celular para tirar a primeira foto, eu senti que estava fazendo da vida daquelas pessoas um espetáculo. E eu me senti a pior pessoa do mundo. Para mim era um trabalho da faculdade, mas lá dentro tinha gente faminta, tremendo de fome enquanto comia a única refeição do dia sem saber se conseguiria se alimentar a noite, haviam pessoas que estavam com seus filhos porque em casa não tinham o que comer, e eu estava tirando foto delas para fazer um texto sobre como elas precisavam daquilo para sobreviver.

Eu comecei a pensar “700 refeições não são o suficiente, na verdade, não são 500 refeições no almoço, tem uma fileira enorme de pessoas com fome ali fora. O espaço não é o suficiente, não é o suficiente. Não é o suficiente. Não é o suficiente. Essas pessoas estão famintas. Tem crianças com fome lá fora. Não é o suficiente”.

Minutos depois eu consegui entrevistar mais uma pessoa, um trabalhador. Seu nome era Valmir Silva. Ele disse que 750 refeições por dia é uma quantidade minúscula em comparação a todas as pessoas que precisam do restaurante para sobreviver todos os dias da semana. Para ele, deveria existir um por bairro, ou pelo menos diversos restaurantes bem posicionados, para que não ocorra uma luta por comida. O homem afirmou que muitos compravam dois pratos e comiam montanhas de comida sozinhos, por isso muita gente ficava de fora e a comida acabava mais rápido.

 — Eu não culpo eles, são pessoas que muitas vezes nem vão ter como comer outra coisa durante o dia, ou sequer chegar a tempo para o jantar. É por isso que deveria ser feito mais comida do que é feito lá, para que todo mundo conseguisse comer o quanto quisesse — Por um segundo eu pensei que talvez eles pudessem pensar na distribuição porque muita gente ia ficar com fome do lado de fora, então ele disse algo que eu nunca vou esquecer: “ninguém com tanta fome deveria ter que se preocupar em comer menos para que os outros precisem comer mais”.

Foi um golpe no estômago forte o suficiente para que eu não parasse de pensar nisso pelos próximos três dias.

A última pessoa que eu entrevistei se chamava Claudia Santana. Nós duas sentamos do lado de fora pouco antes dela precisar ir para o trabalho, pois mais uma vez o restaurante havia fechado poucos minutos após abrir, deixando uma fila de pessoas famintas. Ela disse que entendia que a situação do país não estava boa, mas que se as pessoas no poder entendessem a dor do que é dormir de barriga vazia no desespero de não saber se vai conseguir comer no dia seguinte, eles tentariam mudar isso.

 — Algumas vezes eu comi apenas uma fruta durante a tarde, ou algum colega me deu um pouco do almoço dele, mas a noite, nem isso eu consigo ter — Cláudia passou as mãos nos olhos marejados, respirou profundamente e passou a mão no coração, como se ele estivesse prestes a quebrar. — Apesar de tudo, eu sou grata por ainda ter onde comer. Eu não sei o que seria de todas essas pessoas que comem lá todo dia, se esse restaurante fechasse, como já ocorreu com outros restaurantes populares em Imperatriz.

Durante todas as entrevistas, eu não conseguia falar nada além de fazer as perguntas. Eu não sabia o que dizer, nem como me expressar sobre tudo que tinha acabado de ouvir. Em poucos meses fará dois anos que aconteceu, e eu nunca parei de pensar nas pausas entre as frases que cortaram meu coração.

Esse foi o primeiro contato que eu tive com o jornalismo. Eu sou grata, porque me aproximou de uma realidade que eu via de forma distante. Uma jornalista precisa ter empatia e responsabilidade, e com a reportagem, essa foi uma das primeiras coisas que aprendi e que nunca vou esquecer.