Em Santa Inês, Quilombo Onça festeja em meio a conflito e celebra a retomada
Barbara Malaquias
No Brasil, a luta dos quilombos por reconhecimento e direitos é uma realidade constante. Em 2022, existiam 8.441 localidades quilombolas no território brasileiro, sendo o Maranhão o estado com o maior número delas, 2.025, das quais 1.152 são certificadas.
No interior do estado, a 18 km de Santa Inês, encontra-se o Quilombo Onça, um lugar de rica história e cultura. Acessível por estradas de terra que serpenteiam por entre paisagens de coqueirais e cercas de arame, o quilombo guarda a memória ancestral de um povo que resiste e luta por sua identidade. Confesso que, antes de chegar, me questionei sobre como seria recebida por uma comunidade que luta bravamente por seus direitos e enfrenta tantos desafios.

A comunidade foi fundada em 1901, pelo bisavô de uma das lideranças, Valdivino Lopes Silva, conhecido como Vaim. “Ele veio acorrentado no Navio Negreiro. E foi parar em Caxias. Lá chegou e os fazendeiros, você sabe, já estavam esperando”, relata. O bisavô, após anos trabalhando, na época que estavam sendo abertas as estradas para a BR-222, saiu do engenho e fez seu “mocambinho” para a família. Foi lá que seu povo se encontrou. “Me achei aqui, me reconheci aqui. Me entendi já aqui nesse povoado”, complementa Vaim.
Viviam da caça e do plantio de roça, levando uma vida simples. Um dia, um dos caçadores morreu num conflito com uma onça, mas também a matou. “Aí partiu o bucho dela, rasgou e a onça caiu para um lado e ele caiu para outro”. E foi assim que o quilombo recebeu o seu nome, Quilombo Onça.

Conflitos
Hoje, a comunidade enfrenta desafios como a violência e a disputa por terras. Ataques de fazendeiros, como a agressão a Antônio Ferreira Lima, um ancião e líder local, e a destruição de plantações, marcam a história do quilombo. “Aquilo ali nós não recuperamos mais nunca”, lamenta Antonio Jean, conhecido como Gato Preto, ao relembrar a escassez de alimentos após um ataque. “Enquanto nós não tivermos o título de nossa terra na mão, eu acho que não vai melhorar”, complementa. “Nossa resistência não será silenciada e continuaremos a luta pelo respeito à nossa história, nossa terra e nosso povo”, diz o trecho da carta de Valéria, lida na comemoração dos dois anos de retomada.
Mas o povo dessa comunidade não se deixa abater. Em um ato de resistência, reconstruíram suas casas de taipa e retomaram o terreno da comunidade, que hoje leva o nome de Negra Maria de Nazareth Lopes, em homenagem à mãe de Vaim, que esteve à frente da luta no início da recuperação do espaço. “Nós lutamos por moradia dentro do território, somos vigias de terra”, declara Inocêncio Quilombola, que se juntou à comunidade para ajudar na retomada.
A festa
O costume cultural pulsa forte no Quilombo Onça. O bumba meu boi, o tambor de crioula, a cultura de mina e o terreiro são expressões vivas da ancestralidade que os mais velhos fazem questão de passar para as novas gerações. “A minha raiz é a minha fortaleza”, afirma Inocêncio, orgulhoso de sua identidade.

A comunidade só conseguiu comemorar a Retomada Negra Maria de Nazareth Lopes em seu segundo ano, pois no primeiro aniversário o conflito era mais perigoso e havia o receio de chamar a atenção dos fazendeiros. Mas como diz Valéria, filha de Vaim: “Enquanto houver resistência, haverá quilombo”, em uma carta que ecoa o espírito do Quilombo Onça.
O preparo da comemoração, que envolve o tempero das carnes, compra de ingredientes e a separação de elementos para a festa, começou um dia antes,. Seu Inocêncio conta sobre os adereços do altar, como o coco babaçu, cabaças, copinhos de bambu produzidos por ele mesmo, folhas de plantas medicinais desidratadas e quiabos secos. A informação de que o café é feito da semente, foi a coisa mais encantadora que ouvi na vida, não tive oportunidade de provar ainda, mas me marcou profundamente.

Na festa teve “macumba”, como disse o próprio Vaim, tambor de crioula, bumba meu boi, muita comida, bebidas, risadas e lágrimas de alegria ao celebrarem o segundo aniversário da retomada. “As autoridades que olhem para a nossa situação com justiça e sensibilidade. Que o Estado cumpra seu dever de proteger os territórios quilombolas e promova a demarcação de nossas terras, para que possamos viver em tais medo e sem sermos constantemente ameaçados”, pede Valéria, em carta lida para todos.

Senti-me parte da família, acolhida por um povo que, apesar de todas as dificuldades, emana força e alegria. A receptividade da comunidade se revelou um dos pontos mais marcantes da experiência. Compartilhando histórias e refeições, a equipe teve a oportunidade de mergulhar na rica cultura quilombola. A troca de experiências proporcionou um aprendizado valioso sobre a luta pela terra, a resistência e a importância da preservação da memória ancestral.

Esta matéria faz parte do projeto da disciplina de Redação Jornalística do curso de Jornalismo da UFMA de Imperatriz, chamado “Meu canto também tem histórias”. Os alunos e alunas foram incentivados a procurar ideias para matérias jornalísticas em seus próprios bairros, em Imperatriz, ou cidades de origem. Essa é a primeira publicação oficial e individual de todas, todos e todes.