Paneleiras mantêm viva a tradição das Quatro Bocas

Mesmo com a criação do Panelódromo, cozinheiras ainda atuam na região original

Beatriz Lucena

Panelas chiando, temperos no ar e mãos na massa movimentam as Quatro Bocas, um dos maiores centros de culinária de Imperatriz (MA), localizado no bairro Nova Imperatriz. Mais do que pratos típicos maranhenses, cada barraca abriga histórias, culturas e vivências que atravessam gerações, sejam elas das cozinheiras ou dos clientes. São décadas de trocas e encontros entre moradores e turistas, que vão em busca de simplicidade e comida boa.

Uma das barracas que, com panelas, vasilhas, cheiros e sabores, ajudam a construir as fases históricas das Quatro Bocas. (foto: acervo pessoal)

O termo “Quatro Bocas” tem origem na antiga configuração do local, que se situava em um cruzamento estratégico entre quatro ruas movimentadas da cidade. Com o tempo, a área passou a concentrar barracas de comida, antes improvisadas, hoje mais organizadas e estruturadas. Além do sentido literal, o nome ganhou uma conotação simbólica: remete à ideia de várias bocas para alimentar, muitas vozes que relatam histórias e diferentes costumes que se cruzam diariamente naquele espaço. Ana Júlia, jovem de 18 anos e funcionária de uma das bancas, reforça esse vínculo afetivo com o trabalho: “Eu não preciso fazer terapia, porque quem trabalha com isso, faz é gostar mesmo, por causa da gente atender bem, ter o ato já de servir os outros.”

Passado e Presente

“Eu ganhei a minha vida nas Quatro Bocas”, afirma Francisca Neto, ao relembrar sua trajetória como mãe, esposa e paneleira. Em 1979, após perder o esposo em um acidente de carro, dona Francisca chegou a Imperatriz (MA) acompanhada dos filhos. No início, moraram de favor na casa de uma amiga. Com muita dificuldade, conseguiram alugar uma residência até que, em 19 de novembro de 1982, conquistaram a tão sonhada moradia, próxima ao local de trabalho.

 “Ia nas Quatro Bocas, vinha aqui pra olhar menino, passava a noite todinha nessa rotina. Passei 10 anos trabalhando de noite. Foi o fim da picada”, relembra ela, aliviada da rotina que tinha. O ritmo exaustivo cobrou seu preço: após um grave problema de saúde, dona Francisca decidiu não trabalhar mais durante a noite. Em 2005, depois de anos de esforço e dedicação, garantiu sua aposentadoria. Hoje, guarda com carinho as memórias e amizades construídas ao longo dessa década de trabalho.

Dona Francisca trabalhando nas Quatro Bocas na década de 1990. (foto: acervo pessoal)

Por outro lado, Nizelvanha Dantas, conhecida como a famosa Loira da Panelada, relembra que, em 2018, começou a fazer algumas diárias para um parceiro e, com o tempo, acabou pegando gosto pelo trabalho. “Agora eu vou trabalhar é para mim. Comecei a rotina: levanta 4h da manhã, chega aqui 6h e pouco e só saio daqui uma 19h, descreve ela sobre o seu dia a dia.

Diferente das gerações anteriores, a Loira consegue conciliar a vida pessoal com a profissional, sem contar que trabalha como paneleira, porque é algo que se identifica, não por necessidade. Atualmente, possui auxiliares que a ajudam, tornando sua rotina menos pesada.

Anos separam as trajetórias dessas duas mulheres, Dona Francisca e Nizelvanha Dantas. As oportunidades foram distintas, os caminhos singulares. Mas, apesar do tempo e das mudanças, algo permanece inabalável: a tradição, que resiste, se reinventa e segue firme, mais forte que qualquer dificuldade.

Avanços e Perdas

Em 2013, o proprietário do terreno às margens da avenida Bernardo Sayão exigiu a retirada das paneleiras do local, mas foi apenas em outubro de 2022 que o remanejamento aconteceu, de fato. Algumas ficaram na rua Rio Grande do Norte e outras foram para o Panelódromo da Culinária Popular, localizado no Centro de Imperatriz. Essa transição foi marcada por controvérsias, resistência e, principalmente, por adaptação.

De um lado, o Panelódromo Popular, criado pela prefeitura; do outro, o terreno construído com o apoio e a força das paneleiras. (foto: acervo pessoal)

“Eu, com mais duas amigas… aqui era um terreno que era só mato. A gente chamou o dono, alugamos e deu foi certo”, recorda a Loira da Panelada. O terreno, localizado nas proximidades da avenida Bernardo Sayão, foi fruto de um ato de coragem dela e de algumas parceiras que, juntas, conquistaram o espaço onde hoje mantêm vivo esse legado. “Ficou foi melhor… não tem aquela coisa que a gente pensa que vem pro mal, mas fez foi o bem”, completa.

Em contrapartida, Alessandra dos Santos desabafa: “Melhor é na avenida, ? A tradição… mas fazer o quê, aqui nós paga aluguel”. Assim como ela, outras paneleiras também compartilham desse sentimento, afirmando que, embora agora o espaço seja mais organizado e amplo, o movimento na avenida era maior e as vendas, mais frequentes.

Apesar dos avanços na infraestrutura e da promessa de melhores condições de trabalho, muitas paneleiras ainda carregam a saudade dos tempos em que a movimentação intensa da avenida garantia o sustento diário com mais facilidade. A mudança trouxe benefícios visíveis, mas também revelou o peso das perdas simbólicas e afetivas, elementos que, para elas, não se medem apenas em espaço, mas em pertencimento.

Relacionamento

Com os relatos das trabalhadoras, é evidente que, em grande parte, o relacionamento respeitoso com a clientela é recíproco. “Tem vez que tem gente que chega triste aqui, eu pego e converso, quando eu vejo, a pessoa já sai feliz”, conta Ana Júlia, com um sorriso aberto. No dia a dia, além de servirem comida, elas também oferecem atenção e escuta. O ambiente que criam é acolhedor, assim, fortalecem o vínculo entre quem vende e quem chega para comprar.

“O povo gosta de comer aqui, com os pés no chão, olhando para a rua com as panelas assim… quem vem, é porque gosta”, comenta a Loira da Panelada. Segundo ela, o preconceito não existe na sua rotina nem nos ambientes em que frequenta, especialmente nas Quatro Bocas. Pelo contrário: quem ainda não conhece sente curiosidade, quer experimentar os pratos, descobrir os temperos e viver a experiência por completo.                    

Loira da Panelada em frente à sua barraca, onde serve sabor único, sorrisos sinceros e boas conversas à sua clientela. (foto: acervo pessoal)

Assim, nas panelas que borbulham nas Quatro Bocas, não se cozinha apenas comida, mas também história, resistência e pertencimento. Entre caldeirões, risos, desafios e madrugadas, as paneleiras mantêm viva uma prática que é, ao mesmo tempo, cultura e conexão. Porque, no fim das contas, a panela continua no fogo, e o legado, no coração de quem nunca deixou de acreditar.

Esta matéria faz parte do projeto da disciplina de Redação Jornalística do curso de Jornalismo da UFMA de Imperatriz, desenvolvido em parceria com a disciplina Laboratório de Produção de Texto I (LPT), chamado “Meu canto tem histórias”. Os alunos e alunas foram incentivados a procurar ideias para matérias jornalísticas em seus próprios bairros, em Imperatriz, ou cidades de origem. Essa é a primeira publicação oficial e individual de todas, todos e todes.