Onde moram as lembranças? Memórias de afetos em uma rua de Imperatriz

As histórias da Monteiro Lobato, contadas por quem as viveu desde o início

Vinicius Oliveira

O chão era de barro batido, algumas casas de madeira e a iluminação ainda era só promessa quando os primeiros moradores chegaram à rua Monteiro Lobato, no bairro Bom Sucesso, em Imperatriz. Hoje, quase quatro décadas depois, os fios da memória ainda cruzam o caminho — entre saudade, mudanças e resistência. A história da Monteiro é contada pelas gerações que cresceram, envelheceram e se mantêm firmes no mesmo endereço, como é o caso da família Machado, da senhora Maria das Graças e das vizinhas Francisca e Raiane Rodrigues.

A primeira a chegar foi Francisca Núbia Machado, em 1987. Ela lembra que veio da rua Rio Grande, no bairro Nova Imperatriz, onde morava de aluguel, até conseguir comprar um terreno na Monteiro. Na época, a via não era asfaltada e as casas ao redor ainda eram feitas de pau. A iluminação pública só chegou nos anos 1990. Para ela, a convivência com os vizinhos era o que tornava tudo especial: “A gente sempre comemorava junto: Natal, Dia das Mães, São João… era sempre reunida a vizinhança”, conta Francisca.

Rua Monteiro Lobato vista logo pela manhã: moradores ainda definem a vizinhança como acolhedora (foto: Vinicius Oliveira)

Francisca se recorda das noites em que conversava nas calçadas, dos filhos correndo soltos pela rua e da tranquilidade dos tempos em que era dona de casa. Hoje, mesmo acreditando que ainda faltam melhorias na rua, afirma que continua ali porque a vizinhança é acolhedora e foi naquele pedaço de chão que criou sua família: “É uma lembrança boa pra mim, de meus filhos terem tido uma infância de verdade. Eu me sinto muito bem aqui. Criei meus filhos, netos e vou criar minha bisneta”, diz Francisca, esperançosa.

Herdeiras da memória

Quem também viu essa história de perto foi a filha dela, Mayara Almeida Machado, que cresceu no mesmo endereço. A iluminação já existia em sua infância, ainda que com alguns curtos de vez em quando, mas o asfalto só chegou quando já era adulta. Mayara passava o dia inteiro brincando na rua e à noite as calçadas viravam espaço coletivo: “Era o dia correndo, chegava em casa suja, e à noite tinha brincadeiras mais leves, cai no poço… contar história… era assim nossa infância”, afirma Mayara.

Ela lamenta que, hoje, seu filho não possa ter a mesma liberdade. A insegurança e a ausência de outras crianças nas redondezas afastaram os pequenos da rua. “Hoje falo para os meus filhos: ‘Queria que vocês pudessem ter a infância que eu tive’. Aproveitei tudo que tinha pra aproveitar.”

Rua Monteiro Lobato, antes cheia de crianças, hoje vemos apenas um menino brincando enquanto a família observa (foto: Vinicius Oliveira)

A terceira geração da família, representada por Kamily Vitória Machado, teve uma infância já marcada pela transição. Já na piçarra, embora ainda brincasse na rua, sentia a diferença: eram poucas crianças da mesma idade. Ela lembra de pintar o chão em época de Copa, fazer bandeirolas com os amigos e assistir aos jogos em grupo: “Na infância era eu, Vinícius, Lohanna e Beatriz. Era só nós quatro mesmo, já não tinha tantas crianças da nossa idade. A gente teve que brincar com os mais velhos”, lembra Kamily, citando amigos de infância.

Mayara e filhos no chá de revelação da sobrinha Kamily Vitoria (foto: acervo pessoal Kamily Machado)

Hoje, grávida, Kamily observa com lucidez que sua filha provavelmente não terá a mesma infância: “Eu sei que ela vai brincar só com os primos mesmo, que inclusive até já são mais velhos que ela”, ironiza ela, enquanto sorri com sua avó.

Pertencimento

Pouco tempo depois da chegada de Francisca, em 1988, quem também veio morar na Monteiro Lobato foi Maria das Graças de Sá Oliveira, que saiu de São Domingos e passou um tempo em uma residência na  Dom Evaristo antes de fixar endereço no bairro. Ela lembra que, no início, a rua tinha água encanada, mas ainda não havia energia elétrica. Sua casa já era de alvenaria, mas muitas outras ao redor eram de madeira: “Casei com meu marido, que era daqui, e quando nos mudamos já estava tudo construído”, relembra Maria, que afirma que sua casa foi uma das primeiras em alvenaria dali.

Maria das Graças lavando louça na cozinha da mesma casa de 1988, hoje já reformada algumas vezes (foto: Vinícius Oliveira)

Ela diz que os vizinhos se conheciam mais, que os filhos brincavam na rua sem nenhuma preocupação e que o tempo parecia andar mais devagar. Hoje, a correria do dia a dia e a falta de tempo afastaram os encontros: “Tinha muita festa, era movimentado, dava trabalho pros vizinhos. Hoje em dia as pessoas é mais é dentro de casa”, lamenta.

Durante anos, Maria das Graças trabalhou como zeladora da Igreja Philadelphia, localizada na esquina de sua casa. Não havia nem postos de saúde por perto — o que contrasta com a realidade atual: “Não tinha mercado. Para comprar alguma coisa a gente tinha que ir lá… na rua. Isso tá mais fácil. Não tinha nem farmácia, nem creche…”, comenta.

Comercio local onde o público atual da rua se reúne para comer e conversar à noite (foto: Vinícius Oliveira)

Francisca Rodrigues Oliveira, de 48 anos, chegou à Monteiro Lobato há cerca de 30 anos, após se mudar da Nova Imperatriz com a família. A mudança aconteceu depois que seu pai teve um desentendimento com um vizinho e decidiu vender a casa. Assim, encontraram a Monteiro, ainda sem asfalto: “Ele cismou com um vizinho, vendeu a casa, juntou tudo e comprou aqui nessa rua.”

Ela relembra as festas juninas com os vizinhos, as brincadeiras de infância e o quanto todos se conheciam. Mesmo que alguns moradores tenham mudado, ainda mantém contato com muitos. Mas reconhece que hoje a região está mais perigosa, o trânsito aumentou e as crianças já não brincam como antes: “As crianças não brincam mais. É o trânsito, a violência… essas coisas mudaram hoje em dia”, percebe Francisca.

Francisca Machado e Francisca Rodrigues mantendo a tradição de conversar na calçada (foto: Vinícius Oliveira)

Sua filha, Rayane Rodrigues Oliveira, também cresceu no endereço e guarda boas lembranças da infância. Ela se recorda da piçarra, das casas ainda modestas e da mistura de madeira com tijolo. As festas duravam dias e reuniam moradores de várias partes da Monteiro: “No Natal, eram três ou quatro vizinhos que faziam, e os outros iam pra casa deles.”

Rayane ainda mantém contato com amigos da infância e tem carinho pelas memórias das brincadeiras como esconde-esconde, taco e polícia e ladrão. Hoje, no entanto, percebe que as crianças estão mais voltadas para telas do que para o convívio na vizinhança:

“A gente brincava na rua, fazia festinhas. Hoje em dia não tem mais isso, mas falo com todos ainda”. Mesmo com todas as transformações, ela afirma que gosta de morar ali e pretende continuar vivendo naquele espaço.

Hoje, com asfalto, comércios, farmácias e escolas por perto, a rua Monteiro Lobato se tornou um espaço que guarda em cada casa um pedaço de história. As famílias que fincaram raízes ali ajudaram a construir mais do que um bairro: criaram um território afetivo, entre festas, trocas de vizinhança e a infância ao ar livre.

Enquanto o tempo avança, as gerações se renovam, e o sentimento de pertencimento permanece. Assim, a Monteiro Lobato segue entre lembranças e esperanças, sendo uma rua onde a memória continua viva.

Esta matéria faz parte do projeto da disciplina de Redação Jornalística do curso de Jornalismo da UFMA de Imperatriz, desenvolvido em parceria com a disciplina Laboratório de Produção de Texto I (LPT), chamado “Meu canto tem histórias”. Os alunos e alunas foram incentivados a procurar ideias para matérias jornalísticas em seus próprios bairros, em Imperatriz, ou cidades de origem. Essa é a primeira publicação oficial e individual de todas, todos e todes.