O que há no terceiro andar? A rotina da ala de cardíacos do Hospital Carlos Macieira

Texto: Amanda Cibelly

Fotos: Arquivos pessoais

O dia é 3 de abril de 2022, 9 horas da manhã. Muito movimento na avenida Jerônimo de Albuquerque, uma das principais de São Luís-MA. Pedestres, carros e motos  comprovam o ritmo alucinante da cidade. Em contraste, pode-se perceber um prédio grande, com aparência de antigo, com várias janelas protegidas por grades, um imenso estacionamento aberto e uma fachada verde-clara com um letreiro branco escrito: Hospital Dr Carlos Macieira. Ao entrar, no andar principal, há um jardim com palmeiras e ar fresco.

No terceiro andar está a ala para atendimento de cardíacos. Médicos e enfermeiros transitam pelo enorme corredor, com várias portas que levam aos quartos. Ao centro,  uma sala principal, com janelas extensas dos dois lados, sendo uma com vista para a avenida e outra para o fundo do hospital. Também podem ser vistas algumas poltronas e uma mesa na qual senhores de roupões brancos com verde, o uniforme, jogam dominó.

No final do corredor, há uma porta que leva para um outro quarto bem amplo, a enfermaria 305. Quatro camas, com papel na parede identificando os nomes dos pacientes instalados nos leitos, uma escrivaninha e uma poltrona azul para cada uma. As janelas permitem a vista para a avenida e há um lavabo climatizado atrás da porta, de paredes azuis e brancas. Quem entra só distingue o lugar como um quarto de hospital pelos grandes aparelhos respiratórios instalados nas cabeceiras e a frequente visita de enfermeiros e médicos.

Neste momento chega mais uma paciente, que irá se acomodar no leito 17. Ela já recebeu suas pulseiras. A de cor branca é para a identificação do nome. Na vermelha, constam as alergias que possui e a amarela informa os remédios que podem ser receitados. Ela está meio tímida, mas logo é acolhida com sorrisos e diálogos.  Na enfermaria 305 as pacientes são todas mulheres, e pelas suas malas, percebe-se que já estão ali há um bom tempo.

Cuidados e carinho

O primeiro leito, visualizado ao entrar na porta, é o 17, de Iêda Foicinha, 78 anos. Ela recebe cuidados paliativos. Muito charmosa, cabelos pretos, negra, olhos castanhos, unhas sempre arrumadas e com um bom gosto musical, Iêda é super fã de Roberto Carlos. Tem uma caixinha de música acima da sua cama para tocar várias músicas do “rei”. Os filhos se revezam para acompanhar o seu dia a dia. Maricelia Foicinha, de 45 anos, a filha do meio, mora em São Luís, é cabeleireira e deixa o seu salão para ficar com a sua mãe. “É a minha mãe, meu amor. A única que tenho, vou fazer o que for preciso por ela”, comenta.

Filhos de Iêda Foicinha, como Maricelia, se revezam nos cuidados

 

Já estão há alguns meses no hospital. Após sofrer um AVC isquêmico, Iêda teve que ficar na UTI durante dias e foi diagnosticada com cardiomegalia, também conhecido como coração gigante. Mas já recebeu alta e está na enfermaria para receber os cuidados necessários. Iêda se alimenta por uma sonda nasogástrica. O seu cotidiano não é fácil, ela se comunica pelo olhar. Seu semblante é convicto de uma mulher guerreira, com muitas histórias de vida.

Durante o dia, Maricelia entretém sua mãe com belas histórias, conversas e sempre segurando sua mão. A cada procedimento, todos do quarto se mobilizam para ajudar e dar o maior conforto para Iêda. “Ela é o xodó do quarto”, diz dona Maria das Graças, 74 anos, paciente do leito 16. Com cabelos claros, parda, vaidosa, personalidade forte e bem-humorada, Maria tem nove filhos, 30 netos e nove bisnetos. Mora em Imperatriz- MA, mas foi transferida como caso de urgência para o hospital após sofrer um infarto, quando foi detectado que ela estava com quatro das principais artérias entupidas. “Eu tô boazinha, não tô sentindo nada. Por mim, estaria na minha casa comendo minha carninha de porco frita”, resmunga Maria para sua neta. Todas riem.

No leito 18 está Rosa Ribeiro, 52 anos, de Bom Jardim-MA. Cabelos pretos, negra, animada, ela tem um carinho enorme por sua família. Já operada, está sendo acompanhada no pós-operatório, para evitar qualquer imprevisto. “Eu tô aqui desde janeiro. Há dez anos  fiz essa cirurgia e não parei de comer as coisas erradas, e estou aqui de novo. Mas desta vez vou me comportar”, comenta,  em um tom de brincadeira, para todas do quarto.

 

“Desta vez vou me comportar”, diz Rosa Ribeiro

 

Yandra Ribeiro, 27 anos, filha de dona Rosa, acompanha a mãe tornando o processo mais leve. As duas tranquilizam e encorajam todas do quarto que ainda irão fazer a cirurgia. Elas fazem ligações todos os dias a outros membros da família, para que possam amenizar toda a saudade durante o processo. O neto de Rosa, de 3 anos, todas as tardes liga chamando-a para brincar com ele e passam horas se divertindo, pelo celular.

No leito 19 está Maria do Socorro, 42 anos, que reside em Gurupi-MA. Ela é parda, cabelos castanhos escuros, apresenta um semblante mais cansado, mas tem uma história comovente. Acompanhada por amigas e cunhadas, Maria do Socorro tem cinco irmãos homens. Por isso, opta  por estar junto de mulheres conhecidas que revezam para estar com ela. Maria do Socorro foi diagnosticada com um sopro cardíaco, sente várias dores no peito e fadiga frequente. Está sendo avaliada para uma possível cirurgia para reverter seu quadro clínico e sua força e garra é incentivadora.

Visita esperada

Todas têm a sua rotina. Às 5 da manhã, as enfermeiras trazem seus medicamentos, elas tomam banho, trocam de roupa e aguardam o café da manhã. Às 10 horas acontece o banho no leito de Iêda e a fisioterapia das demais. Às 11h, lanche da manhã, às 12h30 os seus almoços chegam. Todos já sabem memorizado os horários.  Uma rotina atribulada, mas o humor e a amizade criada no local não deixam nada entediante. Fofocas, histórias e lendas  são o que não faltam neste quarto.

Uma vez na semana, Maria das Graças recebe a visita de seu esposo, o companheiro de 56 anos de casados. Por sua idade, não é permitido que ele fique como acompanhante, mas as assistentes sociais deixam que ocorra uma breve visita às quartas-feiras. Para ela, o dia já começa diferente. Ansiosa para ver o seu amado, é a primeira a ir ao banho. Se arruma e se perfuma.

Maria das Graças esperou, ansiosa, a visita do marido

 

Neste dia, vestiu-se com uma calcinha de renda vermelha. Dona Rosa e dona Socorro brincam, dizendo: “Não deixem esses dois pombinhos sozinhos, senão eles vão namorar dentro do banheiro”. “Verdade, até com calcinha vermelha a Graça colocou, hoje ela tá mal-intencionada, vigiem eles”. Todas do quarto riem e batizam a enfermaria de Calcinha Vermelha.

Alegria e comoção

Às quintas-feiras, ocorre a visita da fisioterapeuta ocupacional, que desenvolve atividades diversas: cruzadinhas, músicas, filmes na sala central, banho de sol e visitas ao jardim do primeiro andar. Como essas ações ajudam a quebrar a rotina, tornam-se  a maior aventura.

 Em 23 de abril de 2022 o dia começou diferente. Movimentação maior do que o comum nos corredores da ala dos cardíacos. Várias pessoas estão reunidas na sala central, ao lado de bolos, salgados e doces expostos na mesa para o aniversário de Iêda. Filhos, netos e bisnetos se juntaram para homenageá-la por mais um ano de vida. Médicos, pacientes e enfermeiros se disponibilizaram para cantar os parabéns em um dia cheio de emoções para a família.

Logo ao anoitecer, uma ocasião festiva não poderia terminar melhor para as pacientes da enfermaria 305. Rosa Ribeiro, recebeu alta e Maria das Graça foi aprovada para cirurgia. A ansiedade toma conta do lugar, choros de alegria e comoção contagiam a todos à sua volta, que se apressam para comunicar as novidades aos demais familiares.

A emoção é tamanha que, quando todos se dão conta,  já amanheceu. Orações e energias positivas são direcionadas para as pacientes. Às 7 horas da manhã,  um membro da equipe médica aparece para levar Maria da Graça ao centro cirúrgico, da qual sairia bem. Aos poucos a enfermaria 305 abre vagas para novas pessoas vivenciarem emoções e experiências, jamais esquecidas neste hospital.

* Esta matéria faz parte do Projeto Vivências, que estimula os estudantes de jornalismo a abrirem todos os seus sentidos e narrarem ambientes, ações e personagens.