O que as lendas ainda contam sobre o jeito de viver em São Vicente (RJ)

Personagens locais relembram mistérios e debatem a força do imaginário vivo

Camila Feliciano

Em uma noite escura, distante do centro de São Vicente de Paula, as ruas de chão batido, cercadas por árvores e sem iluminação, estavam vazias. O povo evitava sair, com medo de dar de cara com ela. Alta, com ferraduras que faziam barulhos estridentes, ecoando até nos pontos mais afastados e chamas no lugar do crânio, a Mula sem Cabeça era um dos seres mais temidos pelos são-vicentinos.

Histórias como essa ainda são comuns nas rodas de conversa de São Vicente de Paula, localizado em Araruama, no interior do Rio de Janeiro. Mesmo com os avanços tecnológicos, a região mantém vivas suas raízes tradicionais e continua cercada por lendas.

Mula sem cabeça e lobisomem ganham vida nas trilhas e histórias de São Vicente de Paula (ilustração: Letícia Alves de Amorim)

Essas histórias, que por décadas foram passadas a cada geração, representam um elemento forte da cultura oral de São Vicente e também da memória do município. Hoje, esses contos continuam presentes na região devido às famílias, que seguem contando essas narrações antigas. Mas também nas rodas de conversas, que por mais que estejam mais difíceis de encontrar, ainda existem.

“Ainda tem história. Muita gente ainda escuta e conta sobre o que passou e passamos, em roda de pessoas antigas”, garante Leandro Oliveira da Silva, de 43 anos, morador de São Vicente há 40, conhecido na região como Léo. Como cresceu ouvindo relatos de parentes sobre as lendas locais, Léo hoje compartilha essas narrativas tradicionais durante conversas com amigos e para os mais novos da sua família. Ele acredita que os contos mostram como era o cotidiano antigamente, revelando um jeito de viver que hoje já não é tão comum.

Memórias Folclóricas

Leandro, assim como outros moradores são-vicentinos, diz já ter vivido experiências sobrenaturais relacionadas aos mitos locais mais de uma vez. “Eu mesmo já vi a Mula Sem Cabeça em 1997, quando tinha 15 anos”, afirma com convicção. Segundo ele, o encontro aconteceu no Loteamento Santo Antônio, bairro próximo ao centro de São Vicente, que ele descreve como um local mal-assombrado na época.

Diferente de Leandro, Mário Sérgio Moreira Antunes da Silva, de 43 anos, sempre morou em São Vicente, mas nunca teve experiência sobrenatural relacionada às lendas. Ainda assim, se lembra bem de uma história que os pais contavam quando ele era criança. Diziam que o vigia de um posto de gasolina chamado Durval se transformava em lobisomem. Em noites de lua cheia, Durval sumia do posto, e uivos eram ouvidos vindo da mata. “Eu morria de medo e não ia de jeito nenhum para esse posto ou para a mata”, relembra Sérgio.

Leandro e Mario Sergio relembram a época em que as lendas aterrorizavam e uniam a população de São Vicente (foto: acervo pessoal Mario Sérgio)

William Fernandes, de 42 anos, é jornalista e sempre morou em São Vicente. Assim como Sérgio, nunca teve vivências sobrenaturais, mas cresceu ouvindo histórias da avó sobre lobisomens, Mula sem Cabeça e outras figuras do imaginário popular. Ele diz que ainda acredita nessas lendas, embora, quando criança, fosse mais impressionável. Para William, São Vicente é uma região rica em narrativas folclóricas. Ele acredita que o fato de ser um lugar pequeno e agrícola contribui para o surgimento dessas histórias. “Eu via uma boiada correndo e já ficava pensando se era o Negrinho do Pastoreio, que minha avó também contava muito”, destaca o jornalista.

Bárbara Zeba dos Santos, de 18 anos, vive em Araruama desde que nasceu, mas tem uma relação diferente com o folclore local. Apesar da proximidade geográfica, ela não tem muito conhecimento sobre as lendas são-vicentinas, já que no centro da cidade elas foram esquecidas pela população. Diz conhecer melhor as nacionais, como o saci e o curupira, e reconhece o valor cultural das contadas em São Vicente. “Eu já ouvi alguma coisa de um lobisomem uma vez, há muito tempo atrás, mas fora isso, não”, aponta.

Identidade Partilhada

As lendas, como histórias que fazem parte da herança cultural de São Vicente, são representações de vivências passadas na região. Mas Sergio não acredita que elas demostram sobre a convivência e o antigo modo de vida são-vicentina e sim que mostram um povo mais humilde. “Era uma época sem muitos canais de comunicação e a gente era mais bobos, acreditávamos em tudo”, ressalta.

Em contrapartida, Léo acredita que as lendas representam a forma que os antigos moradores de São Vicente viviam. A população era mais unida e se reunia com mais frequência para conversar em um município pequeno, onde viam e ouviam muitas coisas estranhas acontecerem. E essas histórias se espalhavam rapidamente entre os habitantes são-vicentinos. “O povo antigo e até a gente de 43 anos via muita coisa que é fato, que é real”, frisa Léo.

Bárbara reflete sobre a ausência das lendas no dia a dia e a distância entre cidade e tradição local (acervo pessoal Bárbara Zeba)

Já William ressalta que as lendas são heranças culturais que representam como era a convivência entre a população. São Vicente teve um cenário propício para as fábulas, com seu cotidiano simples, centrado no campo, compartilhar de memórias e o toque fantasmagórico. “Havia muitas casas de farinha em várias regiões. Com isso, as histórias de lobisomem se multiplicavam”, pontua o jornalista.

Bárbara crê nas histórias folclóricas locais, mas com algumas ressalvas, e acha que elas representam o jeito de vida são-vicentino. Não acredita que nada seja impossível, mas ao mesmo tempo fica receosa de aceitar as narrativas tradicionais em sua totalidade. No centro da cidade, nunca teve acesso às fábulas da zona rural e tampouco teve a oportunidade de conhecer São Vicente. Ela também relata uma falta de cultura própria na zona urbana de Araruama. “Ninguém sabe a história da cidade aqui [no centro]”, afirma.   

Tradição Conectada

Bárbara, mesmo sem apego emocional às lendas, sente o impacto que a tecnologia trouxe para os contos populares. Sergio compartilha desse sentimento e acredita que os jovens substituíram o ato de escutar as fábulas folclóricas pelo celular, computador e outras tecnologias. Já Léo mantém uma opinião parecida, porém mais radical. Para ele, como as pessoas não se encontram mais para conversar presencialmente, a cultura das lendas vai se perder no tempo, pois a conversação era o que mantinha o costume vivo. “O celular não acabou só com a história do povo de antigamente, mas com a do ser humano”, expõe Leandro.  

William percebeu, após uma conversa em família, que seus parentes demonstravam interesse pelos mitos da região. Eles começaram a enviar contatos de pessoas com histórias para contar e, pouco tempo depois, ele já estava entrevistando conterrâneos da região, trazendo à tona lendas que ele pensava terem sido esquecidas. Decidiu começar uma série documental no seu Instagram chamada “Histórias Clássicas de São Vicente nos Dias de Hoje”, com duas temporadas publicadas, que podem ser acessadas neste link: https://www.instagram.com/p/C_BCgMLOpn9/ . “Um elemento responsável pelo resgate da memória dos seus antepassados”, declara o jornalista.

William reascende as memórias regionais conectando São Vicente ao seu passado e presente (foto: acervo pessoal William Fernandes)

Por ser uma série documental, cada episódio traz uma memória folclórica diferente, resgatando as tradições de São Vicente. Para William, todos os episódios foram especiais, mas o de número 4 da segunda temporada, no qual ele retrata a história da Boiada Invisível, foi especialmente marcante, levando a série a ser reconhecida em Angola, Cabo Verde e Moçambique. Por ser um tema pouco explorado, recebeu grande aprovação da comunidade, que ficou feliz em poder transmitir os mitos locais para a gerações futuras. “Recebemos depoimentos de pessoas conectadas e agradecidas pela iniciativa em preservar as histórias do nosso folclore”, comenta William.

Para ele, gravar a série é uma experiência desafiadora, mas gratificante, que pode, no futuro, inspirar contações de histórias nas escolas, apresentações teatrais e eventos em festivais que promovam o folclore na cidade. William sente que as lendas ainda têm muito a inspirar e que não há motivos para elas se perderem. “Digo às pessoas que sim, as nossas histórias são riquíssimas e devemos preservar com muito zelo”, enfatiza o jornalista.

Esta matéria faz parte do projeto da disciplina de Redação Jornalística do curso de Jornalismo da UFMA de Imperatriz, desenvolvido em parceria com a disciplina Laboratório de Produção de Texto I (LPT), chamado “Meu canto tem histórias”. Os alunos e alunas foram incentivados a procurar ideias para matérias jornalísticas em seus próprios bairros, em Imperatriz, ou cidades de origem. Essa é a primeira publicação oficial e individual de todas, todos e todes.