“O esporte nunca nos preparou para trabalhar contra o racismo”, diz a jogadora de basquete Iziane Castro

Iziane Castro acredita que “o racismo sempre foi velado em nosso país”

A única mulher preta na comissão de atletas do Comitê Olímpico Brasileiro até a última eleição realizada em novembro, conversa sobre a omissão em relação ao preconceito racial

Texto: João Victor dos Santos

Imagem: Arquivo pessoal Iziane Castro

Nome de destaque no basquete brasileiro, Iziane Castro Marques ajuda crianças da sua comunidade por meio do Instituto Iziane, que trabalha para mudar a vida de diversas meninas. “Eu entendi que como atleta da seleção brasileira, eu deveria contribuir como pessoa social e, obviamente, usei o esporte como ferramenta”, relata Iziane sobre o seu instituto criado em 2010.

A ex-jogadora segue os mesmos passos dos ídolos pretos do passado, ensinando para as futuras gerações aquilo que aprendeu com o esporte. “Esse tipo de fala é importante, por isso trabalhamos essas questões raciais em palestras para elas entenderem o que são enquanto pessoa. O nosso bairro, a Liberdade, em São Luís, é o maior quilombo urbano da América Latina”.

Durante a história olímpica do Brasil o esporte foi fundamental para romper barreiras e a partir dele, Aída dos Santos tornou-se a primeira mulher preta e única a participar dos Jogos Olímpicos de Tóquio 1964 e Adhemar Ferreira dos Santos, um homem preto, se consagrou o primeiro bicampeão olímpico do Brasil. São inúmeros os exemplos de atletas pretos que conquistaram muito pelo esporte brasileiro e quebraram paradigmas.

Nesta conversa com a atleta mais importante do basquete maranhense procuramos entender o racismo e sua concepção dentro do esporte brasileiro:

Quando saiu do Maranhão, em 1997, passou pela cabeça daquela criança que enfrentaria adversários além da quadra? Como por exemplo, o racismo?

Iziane Castro Marques – Não, até mesmo porque o racismo sempre foi velado no nosso país.  Então, obviamente que quando saí daqui eu não tinha ideia desse tipo de coisa. Eu fui criada por mulheres pretas e fortes que me ensinaram a saber quem sou, qual meu papel e que ninguém pode julgar ninguém por questão da cor da sua pele, por religião. Fui uma criança que cresceu com esses princípios dentro de casa, então eu sempre entendi o meu papel, mas a gente não tem noção por que são gerações muito diferentes do que a gente vive hoje. Estamos falando de 20 anos atrás.

Aos 21 anos de idade, você já atuava entre as melhores do mundo jogando pela WNBA (Liga de Basquete Americana Feminina). Naquela época, tinha noção do poder da sua voz como mulher negra perante a sociedade?

Na verdade, fui perceber o impacto da minha pessoa enquanto atleta e mulher preta nos contatos com as pessoas. Eu tenho uma lembrança muito nítida de um dia que eu estava em uma loja e uma senhora negra veio e me abraçou, e assim, você via no rosto dela a felicidade por se sentir representada por uma mulher preta que atuava pela seleção brasileira, uma pessoa de sucesso. [Ali] eu senti o impacto do que eu representava enquanto uma mulher preta, principalmente para os meus aqui no Maranhão.

No Brasil se convive com o racismo de diversas maneiras. Quando jovem você foi preparada para lidar com esse mal no meio esportivo?

Não. Hoje existem programas contra o racismo e contra o assédio dentro do Comitê Olímpico Brasileiro, mas esses programas são recentes, de 2020. Obviamente que a minha geração não foi preparada para isso, a sociedade esportiva: clubes, seleções, confederações estão se adequando a isso que existe há muito tempo. Além de ser preta, eu também sou mulher em um esporte considerado masculino, portanto, existem vários outros tipos de preconceito que envolvem toda minha trajetória. Os atletas não são preparados para isso e por isso hoje existe a necessidade desses projetos de combate tanto ao racismo, quanto ao assédio porque as pessoas estão possibilitando ter voz e quando você tem voz, começa a mover a sociedade e os outros começam a tomar providências para capacitar seus atletas e desenvolver seus cidadãos para enfrentar o racismo.

O que você acha que motiva esse atraso das instituições esportivas no combate ao racismo?

Só é colocado algo, seja um projeto, seja um programa, quando realmente a sociedade clama por uma mudança e foi isso que aconteceu após essas ondas que vieram dos Estados Unidos. As pessoas começaram a falar, mostrar que existe o racismo e nós precisamos falar sobre isso e educar nossa sociedade. Então quando se tem uma explosão do tema, se criam as soluções e acho que a partir disso aparece o desenvolvimento desses programas de forma tão tardia, porque a voz demorou a ser escutada. Não adianta só a “Iziane” falar, a “Iziane” tem que mobilizar todo um grupo e esse grupo precisa mobilizar todo um outro grupo e assim nós teremos a força pra poder mudar e propagar.

Por que o racismo ainda é um tabu dentro do esporte brasileiro?

Porque não discutimos, quando existe um ato as pessoas não divulgam, não se mobilizam e isso é dever de todos. Eu lembro das hashtags que fazem, mas não é só com hashtag, sabemos que abolir o racismo estrutural não é só com o ato da “Iziane” falar, mas trazer todo um ciclo de atletas para falar, trazer os dirigentes e os técnicos. Eu sinto que nossa classe é um pouco desunida em relação a isso, a rivalidade da quadra acaba indo para fora dela e não nos entendemos enquanto um grupo, não conseguimos ter um time que aborde, que fale, que lute, que brigue e isso é necessário. Acho que é por isso que não conseguimos ter uma discussão ou um posicionamento de um clube ou da comunidade esportiva, mas a partir desses novos projetos que o comitê olímpico está desenvolvendo, nós teremos mais pessoas capacitadas para também serem propagadores de como reagir enquanto pessoa preta e que possamos melhorar e conseguir sensibilizar todas as pessoas de que somos todos iguais.

Você já foi aconselhada por dirigentes ou outras pessoas a não falar sobre racismo?

Não, inclusive essa é uma discussão que quase não se fala ou não se falava. Hoje, vemos muitas pessoas falarem de algo tão necessário, mas em toda minha carreira não se falou muito sobre isso, eu não presenciei esse tipo de atitude e nem fui educada a me colocar. Realmente nunca fomos educadas a falar qualquer tipo de coisa sobre o racismo.

Por que os atletas brasileiros ainda optam pelo silêncio quando se trata de posicionar-se sobre o racismo?

Eu também quero saber, acredito que seja vergonha. Eu nunca sofri nenhum tipo de racismo ou preconceito dentro do meu trabalho. E, se tivesse sofrido, com certeza iria fazer uma arruaça, pararia o jogo porque racismo é crime e precisamos nos posicionar, não podemos deixar nenhum passar, nunca! Temos que nos posicionar sempre, mas é também por se sentir inferiorizado, humilhado naquele momento e não querer dar voz. Tudo isso vai dessa educação de como se comportar diante de um ato racista, ou até mesmo um ato de assédio, mas precisamos realmente aprender a dialogar sobre isso, porque não se pode deixar que nenhum ato racista passe. Então é muito importante que a gente tenha essa consciência.

Como você analisa a sua atuação nas causas antirracistas no esporte enquanto atleta?

Eu sempre acreditei que temos de liderar por exemplo, e foi isso que sempre fiz. Nunca abordei diretamente esse tema, até mesmo porque não se debatia sobre isso. Mas, você tinha pedido a minha apresentação no início e minha apresentação é a seguinte: “Oi, eu sou Iziane. Nasci preta, pobre, da Liberdade”. Para mostrar que sou preta, não sou negra, sou preta de pele preta e tenho muito orgulho de ser preta, de ser mulher, de ser nordestina e eu sempre me apresentei dessa forma com orgulho, para mostrar principalmente para os mais novos que temos orgulho de quem somos, do que somos e do que nos tornamos. Então, o meu posicionamento sempre foi dessa forma, principalmente por ter sido uma menina que nasceu no quilombo, pobre, eu sempre enfatizei essas coisas para mostrar como é importante essa referência positiva hoje. Não tive tanta voz em relação às questões raciais, mas hoje, com vocês e com quem quer que seja, sempre que convidada estou disposta a falar e conversar sobre um tema que é muito importante. Mostrar a nossa importância e o nosso valor, é isso que tentei ser enquanto importante personalidade do nosso estado.

Acha que poderia ter agido de maneira diferente?

Com certeza, a vivência nos dá essa percepção. Eu não concordo com essa narrativa de que as pessoas não mudam se tu não muda, então tu não vive. Somos um ser em evolução até morrer, aprendemos todos os dias, ninguém é o dono da verdade. Então hoje, eu tenho uma percepção de coisas que poderia ter feito diferente, poderia ter feito melhores, coisas que eu não deveria ter feito. Infelizmente o tempo não volta atrás, a bagagem que adquirimos usamos daqui para frente.

Recentemente a jogadora brasileira na WNBA, Damiris Dantas, apontou racismo por parte da liga americana pela pouca valorização de jogadoras como Janeth Arcain e você. Concorda com ela?

O basquete é um dos poucos esportes que não renovou seus ídolos, as pessoas continuam a falar de Hortência e Paula, não valorizaram as outras gerações: da Janeth, a minha e as próximas, que a própria Damiris encabeça. Não vejo isso como racismo, talvez seja, não sabemos as intenções das pessoas. Talvez seja mesmo a falta de estrutura da nossa Confederação Brasileira de Basquete, que teve uma gestão fatídica, hoje sofremos o descaso da gestão passada que acaba acarretando nos atletas. Obviamente que deveríamos, sim, ter enaltecido mais essas jogadoras e a própria Janeth, que foi uma das maiores vitoriosas do basquetebol feminino, e por que não enfatizar que é uma mulher preta? Eu acho que concordo com ela em relação a isso, não sei se foi racismo realmente ou se foi a nossa estrutura do basquete, mas poderia ter sido enfatizado que após duas “ídolas” brancas tivemos aí duas “ídolas” pretas. Por que não enfatizar isso?

Você viveu em dois países impregnados pelo racismo. A partir da visão de quem morou fora, como você definiria a problemática racial no Brasil e nos Estados Unidos?

O Brasil tem um racismo velado, é um racismo que existe, mas a gente não vê, a não ser que você seja preto ou pobre. Mas nos Estados Unidos ele existe em qualquer classe social, é notória essa divisão do preto e do branco. A população preta nos Estados unidos ainda é muito sentida com toda a segregação que sofreu, acho que a geração cresceu como se ela mesmo tivesse sofrido essa segregação. E a população preta brasileira não é dessa forma, a escravidão acabou em 1800, para nós acabou, não vivemos mais nesse contexto. Obviamente que sofremos as consequências da escravidão, mas eu vejo essa diferença entre Brasil e Estados Unidos. Eu vejo uma revolta da parte da população negra em relação a tudo que passaram e a toda essa problemática, que é muito dura. Mas não resolvemos as coisas na base do ódio, se resolve na base do amor. E acaba tendo esses conflitos injustamente e mortes desnecessárias porque não se muda as pessoas assim, você tem que educar as pessoas e isso só é possível através do amor.

Você ocupou o cargo de dirigente no Sampaio Corrêa em um ambiente diferente dos treinos, e passou a comandar uma área diretiva dentro de um clube importante. Como foi ocupar um cargo como este sendo uma mulher negra?

E única! É mais um desafio ser dirigente esportiva enquanto mulher. Eu sou a única dirigente esportiva preta dentro do basquetebol feminino, quase não temos dirigentes mulheres e quando não se tem mulheres, imagine pretas. Mas para mim é um orgulho muito grande, e convenhamos, o esporte brasileiro tem muito mais pretos do que brancos. Hoje entendo que são lugares de destaque onde nós não temos muitas iguais a mim mas, se for preciso, serei sempre a pioneira, desbravarei. Sei o meu papel de direito, não me sinto menor dentro do ambiente que é maioria de homens brancos. Eu entendo o meu poder enquanto atleta que fui e hoje indo para o lado da gestão esportiva, que é algo que tenho me dedicado muito, me capacitei, e talvez seja melhor que muito homens brancos que estejam lá. Eu tenho muito orgulho em ser percursora, sendo uma mulher preta abrindo portas para que outras também se inspirem e possam adentrar no seu lugar de direito, porque podemos estar onde nós quisermos.