Professora Francisca Parente destaca as ações do Centro de Cultura Negra-Negro Cosme
Betânia Silva
Diogo Dias
Celiane Barbosa
Elisoneide Lima
Jéssica Ketuly
Kelvia Leite
Cristiny Santos
Silmara Gomes
Yasmim Araujo
Na trajetória de Francisca Parente, a luta antirracista não começou em uma sala de aula, numa assembleia ou nas ruas. Teve início dentro de casa, ainda na infância, no povoado Pé-do-Morro, no interior do Maranhão. Ela nasceu em São Domingos (MA) e sua família migrou para esse local quando Francisca tinha 3 anos de idade. Filha de mãe negra e pai branco, ela cresceu entre histórias, orientações e desafios que moldaram sua consciência racial desde cedo. Educadora e ativista na liderança comunitária em Imperatriz (MA), Francisca é formada em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e atua como professora na rede pública desde 1993. Hoje, sua caminhada é símbolo de resistência, especialmente por meio do Centro de Cultura Negra Negro Cosme (CCN-NC), entidade da qual é uma das fundadoras e atual presidenta.

Francisca aprendeu desde pequena a reconhecer e enfrentar o racismo. O cabelo, alvo constante de piadas entre colegas de escola, foi um dos primeiros pontos de dor e aprendizado. “Ele [o pai] me orientava muito, especialmente quando eu sofria com os apelidos racistas”, relembra. Com orgulho, ela fala do pai como um homem à frente de seu tempo, que rompeu com os padrões conservadores da família ao se casar com uma mulher negra e criar os filhos com senso de justiça e dignidade.
A chegada em Teresina (PI), em busca de novos horizontes, foi também um choque de realidade. A capital, tão sonhada, revelou-se um cenário ainda mais hostil, onde o racismo era direto, cotidiano e cruel. Mas Francisca não se calou. “Graças à base que meu pai me deu, aprendi a me defender”, afirma. E foi com essa formação, somada à força da mãe, “mais da porrada”, como diz com um sorriso no rosto, que ela cresceu firme, consciente e determinada. Foi em Imperatriz (MA), porém, que a militância ganhou forma concreta.
Professora da escola Santa Rita de Cássia, Francisca começou a atuar em projetos educativos que dialogavam com a identidade negra. Ao lado das professoras Izaura Silva, Maria do Rosário Silva Rodrigues, Maristane Rosa Sauimbo, Herli de Sousa Carvalho, Maria Luísa Rodrigues de Sousa e de figuras como Mariano Dias, ajudou a fundar o CCN-Negro Cosme, em 2002. Mais que uma instituição, o Centro se tornou um espaço de acolhimento, formação política, afirmação cultural e combate ao racismo estrutural na região. “Quando encontrei o Centro de Cultura Negra, percebi que era ali que eu ia ficar. E fiquei”, diz, com a mesma convicção de quem aprendeu a resistir desde menina.
Ações
O CCN tem sido, ao longo dos anos, um espaço de resistência, acolhimento e promoção da cultura afrodescendente em Imperatriz. Segundo ressaltou Francisca, mesmo enfrentando dificuldades e a falta de apoio do poder público, a entidade segue desenvolvendo projetos que unem tecnologia, cuidado coletivo e preservação da memória negra.
Nomeado de forma oficial como Negro Cosme, o CCN-NC foi fundado em 27 de março de 2002. Seu nome homenageia Cosme Bento das Chagas, líder da Revolta da Balaiada, símbolo da luta negra no Maranhão. Desde sua criação, o Centro é resultado da articulação entre militantes, escolas e universidades de Imperatriz em torno da causa racial.

Nos últimos anos, o CCN tem investido em iniciativas voltadas para a inclusão digital. Em parceria com o governo do Estado, mantém um projeto permanente que oferece acesso a bancadas de informática, impressoras 3D e outras ferramentas tecnológicas. A proposta busca capacitar jovens e adultos, democratizando o acesso ao conhecimento e à tecnologia. Em 2022, foi contemplado com uma Estação Tech, por meio do projeto Inclusão Digital e Empoderamento Negro, do governo do Maranhão, ampliando ainda mais o acesso à tecnologia para a população negra local.
Mas a atuação do CCN vai além. Um dos projetos de maior impacto surgiu a partir de estudos com terapeutas, com o objetivo de fortalecer emocionalmente pessoas negras. “É um espaço onde a gente aprende a cuidar de nós mesmos, segurar na mão do outro e seguir em frente”, explica Francisca. A iniciativa, que lida com ações como a escutoterapia e massagens nas mãos e nos pés, cresceu tanto que hoje se tornou um projeto de extensão da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), onde todas as terças-feiras, terapeutas se reúnem para oferecer diversos atendimentos.
Entre os projetos permanentes do Centro, está a Semana Municipal da Consciência Negra, realizada desde 2001 — um ano antes do CCN-NC ser criado. Mesmo sem apoio institucional, o evento nunca deixou de acontecer. A programação conta com apresentações de teatro, rodas de conversa, oficinas e intervenções culturais nas escolas e comunidades, e tem como tradição também ocorrer durante o aniversário do CCN-NC. A Semana foi instituída oficialmente pela Lei nº 973, de 11 de maio de 2001, de autoria do vereador Mariano Dias Pereira, sendo um dos primeiros marcos da luta negra organizada em Imperatriz.
Além disso, o CCN já desenvolveu uma série de outras ações culturais e educativas ao longo dos anos, como o Festival de Interpretação Teatral de Literatura Negra (Festiafro), o Concurso de Desenho Afro, o Festival de Música Negra, o projeto Leitura na Praça: uma pausa para refletir sobre o racismo, e a criação da Coordenação de Educação para a Igualdade Racial (Ceiri) na Secretaria de Estado da Educação (Seduc), em 2007.
Em parceria com o Centro de Ensino Urbano Rocha, o CCN também fundou a Companhia Afro de Teatro Reinvent’arte e promoveu a Mostra Afro de Artes Cênicas (Marcas). Realiza, nesta área, uma oficina de teatro que aposta nas expressões corporais como ferramenta de fortalecimento da arte como instrumento de transformação social. Criou ainda a Editora Balaiada de Escritas Negras, com diversas publicações focadas na valorização da cultura afro-brasileira. Em 2025, realizou a circulação do espetáculo teatral “Xica do Sertão de Terra e Puaca”, do escritor e ator Domingos de Almeida, passando por três bairros de Imperatriz, além de João Lisboa e Açailândia.

No dia 17 de junho promoveu uma Tribuna Popular na Câmara Municipal de Imperatriz, momento marcante em que foi apresentado o projeto da nova sede do CCN-NC, com arquitetura, engenharia e orçamento elaborados pela Secretaria Municipal de Infraestrutura (Sinfra). Outro destaque foi o lançamento do livro “Histórias negras importam”, realizado no Dia Internacional da África, 25 de maio, fruto do trabalho de estudantes de jornalismo da UFMA. A obra resgata e homenageia, por meio de perfis, a trajetória dos militantes que presidiram o CCN-NC, reforçando a importância da memória e da representatividade negra na história local. “Enquanto houver pretos e pretas com coragem, o CCN vai continuar existindo”, afirma Francisca, com a convicção de quem sabe que a luta pela valorização da cultura negra é diária e coletiva.
Formação
O Centro de Cultura Negra utiliza maneiras de engajar as crianças, com contações de história de literatura infantil, além de peças de teatro com temática afro. “É a forma de contar histórias, tanto na infância, quanto na fase adulta”, ressalta a presidente. O CCN realizou espetáculos teatrais como “O sonho de Xica do Cerrado”, de Domingos de Almeida, “Paca, tatu, cutia? Não!”, de Rosana Rios, e “Racismo mata”, de Durval Cunha, com adaptação de Domingos de Almeida, além de livros como “O amigo do rei”, de Ruth Rocha, “África está entre nós”, de Roberto Benjamim, e “A professora marrom”, de Maria dos Reis. Essas obras incentivam a reflexão sobre valores, resgatam as raízes africanas e estimulam o pensamento crítico sobre o racismo, contribuindo para a formação de uma sociedade mais consciente e inclusiva.
Francisca reforça que o CCN organiza esses momentos para refletir sobre o racismo no Brasil. Segundo ela, essas práticas ajudam a sensibilizar os estudantes do ensino Fundamental, já que provocam reflexão e aprendizagem sobre essa discriminação. “A dor não é só na criança, a dor não é só no adolescente, a dor não é só no adulto, é sobre ouvir e ter essa sensibilidade”, reflete.
Práticas Integrativas
Na condição de professora e ativista, Francisca denuncia a negligência do poder público em áreas fundamentais como saúde, cultura e assistência social. “Nós, enquanto povo preto, precisamos avançar mais”. Na sua opinião, a população negra ainda enfrenta enormes desafios para acessar direitos básicos, e os avanços nas políticas públicas são pequenos diante das necessidades reais.
Um dos principais pontos abordados pela presidente do CCN foi a ausência das Práticas Integrativas em Saúde (PIS) no sistema público de Imperatriz. Embora tratamentos como acupuntura, auriculoterapia, reiki, entre outros, sejam reconhecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e implementados em cidades como São Luís e Palmas, em Imperatriz continuam enfrentando entraves políticos e institucionais.
Segundo Francisca, as propostas são constantemente bloqueadas no Conselho Municipal de Saúde, impedindo que avancem para aprovação na Câmara local. A educadora detalha como ocorre o processo de solicitação. Para ser aprovado, é necessário que seja apresentado aos vereadores, mas isso só é possível por intermédio do Conselho. “Na hora que chega lá no conselho, volta”, lamenta. O caminho para se realizar os projetos é burocrático, o que é uma barreira constante para o CCN-NC e a comunidade preta como um todo.

A presidenta ressaltou que as práticas integrativas poderiam representar um acesso mais justo e humanizado ao cuidado em saúde, especialmente para a população negra, que muitas vezes não pode arcar com os custos desses tratamentos no setor privado. A implantação pelo SUS garantiria o direito aos atendimentos sem distinção. Francisca frisa que a luta por políticas públicas não pode se resumir ao ato de pedir. É necessário acompanhar cada etapa: verificar se a proposta foi encaminhada, se foi aprovada e, depois, se está sendo cumprida. Do contrário, segundo ela, as iniciativas se perdem no caminho, são desviadas ou simplesmente esquecidas.
Luta antirracista
Levantamento realizado pelo CCN-NC revela que 72,04% do total de habitantes da cidade, algo em torno de 196.786 pessoas, compõem a população negra de Imperatriz. Em comparação com 2010, houve um aumento de 16,79% nesse percentual, que leva em conta a autodeclaração.
Francisca critica o fato, porém, de muitos representantes de setores importantes da sociedade imperatrizense nem chegarem a comentar sobre a luta antirracista. Os olhares também carregam julgamento, não precisa que palavras sejam ditas. “O nosso trabalho é muito difícil. Mas a gente não desiste”, enfatiza, ponderando que o fato de o movimento ter resistido já é um sinal de evolução.
Para Francisca, as leis de combate ao racismo são suficientes, mas não são respeitadas. Ela citou como exemplo alguns casos de negligência com mulheres negras até mesmo na hora do parto, em hospitais, quando os profissionais murmuram que a paciente é “fraca” e que não deveria reclamar, pois sua cor demonstra força. “Então querem dizer que o negro é diferente do branco e que não somos dignos de sentir dor, gritar, chorar”, queixou-se, demonstrando indignação.
Apesar das dificuldades, de acordo com a presidente do CCN-NC, a cada dia mais pessoas estão aderindo à causa do movimento negro, e o Centro está fazendo a diferença em Imperatriz. “Mesmo não sendo na sua totalidade, mas nós observarmos esse crescimento a partir das nossas ações e atividades”, conclui Francisca.
*Este perfil foi elaborado a partir de uma entrevista coletiva organizada pelas (os) estudantes do 1º semestre de Jornalismo da UFMA. O texto final, resultado da edição dos exercícios da disciplina Redação Jornalística, é a primeira publicação dessas (es) futuras (os) jornalistas.