Maria, a sapateira do Bom Sucesso

Maria, a sapateira do Bom Sucesso

Entre solas, pratas e K-pop, ela mantém viva a tradição da sapataria artesanal e a memória do bairro.

Por: Renata Sousa

A casa de Maria do Carmo da Conceição Neves tem dois andares e um quintal que não acaba. No fundo, passado o varal e algumas plantas, existe um ateliê com máquinas que funcionam e outras que ela não tem coragem de jogar fora, lixadeiras, um baú enorme cheio de retalhos, manequins masculino e feminino, bancadas com ferramentas espalhadas, colas, martelos e cadarços. Tudo ali guarda um pouco do que foi e do que ainda insiste em ser. A garagem, antes o espaço da Sapataria Padre Cícero, foi levada para dentro da casa pelos filhos, preocupados com o calor e a confusão da oficina. Ainda assim, cada canto mantém a identidade de uma sapateira que resiste: sapatos amontoados, solas, sandálias, botas, bolsas, cintos, zíperes e peças que carregam histórias alheias.

A história de Maria do Carmo, porém, começa antes de tudo isso, em São Domingos do Maranhão, chamada por muitos como “Zé Feio”. Nascida de uma família de onze irmãos, ela veio para Imperatriz com 15 anos, de ônibus, acompanhando o pai. Morou primeiro na Cafeteira, na Nova Imperatriz, até se mudar para o Bom Sucesso, em uma casinha coberta de telha com tábua, onde está localizada a sapataria. “Quando o São Pedro mandava água, molhava tudo”, lembra. Há 34 anos trabalha como sapateira. Entrou no ofício por influência de uma amiga da associação de moradores do bairro que ensinava corte, costura e fabricação de sapatilhas. “Eu comecei a trabalhar porque eu nunca dependi de homem”, diz, com a firmeza de quem sempre soube que seria preciso conquistar espaço com as próprias mãos.

“Bacunça organizada” – Maria em sua oficina.

A prata é seu ouro. Anéis, cordões e relógios brilham em suas mãos e pescoço enquanto ela trabalha, como se o metal traduzisse a força de quem enfrentou o machismo dentro de um ofício historicamente masculino. “As pessoas chegavam e procuravam: cadê seu pai? Ou cadê seu marido?”, conta. A resposta é sempre firme: “Não é meu pai, não. É meu véi.” Apesar de lamentar ser a única sapateira mulher de Imperatriz no ofício, sente orgulho de ter conquistado seu espaço.

Ela realiza todo tipo de consertos: sapatos, sandálias, botas, chinelas, bolsas, cintos, zíperes e até adaptações para pessoas com deformidades nos pés. Uma cliente fixa traz uma havaiana por mês: “um dos pés dela é mais curto, aí eu ajeito”, diz. Além de promover bazares com itens esquecidos por clientes, cobrando apenas pelo material gasto no reparo.

A rotina não tem hora fixa. Ela trabalha de manhã, à tarde ou à noite, no intervalo dos afazeres da casa. Com um celular para falar com a família e clientes, e outro só para a música, ela segue o dia ouvindo o que chama de “limpadores de vista”: cantores coreanos que descobre na internet. Ligada ao Oriente, mesmo sem nunca ter saído do Brasil, a sapateira costura em uma máquina chinesa, da marca West Lake, enquanto o K-pop toca ao fundo.

Hoje, a oficina de Maria do Carmo é um serviço raro no bairro. Em tempos em que tudo se troca antes de tentar consertar, ela mantém vivo um ofício essencial e sustentável: devolve uso ao que seria descartado e economiza o bolso de muita gente. No Bom Sucesso, entre solas e retalhos, ela prolonga a vida dos objetos e, de certo modo, da própria vizinhança.

Antes do CEP

O bairro Bom Sucesso nasceu a partir da Associação de Moradores, criada por lideranças como Pedro Ambrósio e o marido de Maria, Cícero José da Costa. Juntos, articulavam melhorias urbanas, o funcionamento da feira e a chegada da polícia ao bairro, inclusive construindo a primeira sede policial, que, segundo ela, Cícero ergueu sem receber um centavo. A associação era o coração pulsante do bairro, promovia cursos de corte e costura, artesanato, crochê, reforço escolar, EJA – por ser analfabeta, a própria Maria chegou a frequentar algumas aulas – e aulas de música, incentivando as mulheres a terem sua própria renda. “Era a maior da cidade”, lembra Maria do Carmo sobre a associação, que funcionou até o início dos anos 2000. Hoje, restam apenas paredes abandonadas, tomadas pelo lixo e ferragens, mas as memórias permanecem vivas.

Foi nesse contexto que Maria iniciou seu ofício de sapateira. Ela ajudava na lixadeira, recebia duas dúzias de sandálias das alunas da associação para lixar e preparar para a venda. A habilidade e o cuidado chamaram atenção de uma cliente que, ao descobrir que era ela quem fazia o serviço, teria dito a Cícero: “Eu não quero mais que você faça. Eu quero é ela.” E foi ali que Maria entendeu que tinha um dom. “Eu disse: meu Deus, quando a gente nasce, a gente nasce com o dom”, recorda. Desde então, não parou mais: fez roupas, consertou calçados, comprou bens para casa e consolidou sua independência.

"Quando a gente nasce, a gente nasce com o dom."

Caminhos costurados

Maria é o que é graças à associação. Sua história se mistura com a luta coletiva do bairro. A Associação de Moradores, ao lado de Pedro Ambrósio e de Cícero, trouxe melhorias essenciais: ruas mais largas, feira organizada, segurança pública. Além de lixar os sapatos, ela também contribui cozinhando para os encontros, ajudando nas programações e no incentivo a outras mulheres. A feira, hoje menor do que antes da pandemia, segue como um ponto de encontro regional, provando que o bairro ainda pulsa.

Viúva desde 2024, lembra do marido com saudade: “Meu véi.” Fala com carinho e aceitação. Trabalhar, para ela, é também enfrentar o luto. É manter viva a memória de quem ajudou a construir o bairro onde mora, e que não pretende sair.

Cada calçado que passa por suas mãos carrega não só a história de um cliente, mas a história de uma comunidade. Entre o barulho da feira, das máquinas, o cheiro de cola e couro, a prata que reluz nos dedos e a música coreana que toca no celular, Maria do Carmo calça o bairro inteiro. E segue, com a força de quem acredita que a Associação ainda pode renascer, e que, se voltar a funcionar, vai devolver às mulheres do Bom Sucesso a chance de fazer o que ela fez: aprender um ofício, ser livre, ser dona da própria vida.

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Mais que instrumento de trabalho, companheira fiel de Maria.