Tanatopraxia? Vivência em uma funerária

É sábado à tarde. O sol está escaldante e a sensação é de calor abrasador, como é de costume no clima de Imperatriz – MA. As ruas do centro da cidade estão desertas. Lojas fechadas. Trânsito quase parado. Os bares estão lotados com pessoas relaxando, tomando uma gelada e deliciosa cerveja e ouvindo músicas estilo sertanejo e forró. Alguns estão nas portas de suas residências conversando, contando piadas e relaxando após uma longa semana de trabalho. Mas, enquanto a maioria aproveita o fim-de-semana, algumas pessoas naquele exato momento estão desempenhando um trabalho nobre.

Eles são identificados pela sua vestimenta branca – são enfermeiros. O local onde trabalham parece ser impecavelmente limpo. A fachada possui uma porta de vidro fumê. Ao entrar, sente-se um embriagante cheiro de formol. As paredes são pintadas de azul-celeste, harmonizando-se perfeitamente com os assentos brancos de plástico espalhados na recepção. O silêncio mórbido toma conta do lugar.  Quem entra ali se fascina com a variedade de arranjos de flores. Mas certamente ninguém desejaria recebê-las como presente. Os profissionais que ali trabalham lidam com a morte todos os dias. Desempenham um papel fundamental na sociedade. Todo o mundo já teve um parente ou um amigo que passou pelas mãos deles. Certamente um dia também passaremos. Você deve imaginar o lugar ao qual me refiro. Este é o cenário de uma funerária.

Ao aproximar-me da funerária, sinto um frio subindo na espinha. Logo vejo vários caixões, também chamados de urnas funerárias. São caixões bem variados. De todos os tamanhos. Alguns são bem largos e reforçados para suportar o peso de pessoas obesas. Outros são bem compridos – ideais para pessoas altas. Lá também se encontram caixões bem pequeninos, pintados de branco. Dignos de comportar o corpo de uma criança, que por sua inocência, virou um anjinho e foi ao encontro de Deus. A madeira é bem trabalhada, formando desenhos de temática religiosa. Em algumas tampas observa-se a imagem de Jesus Cristo sendo crucificado. Em outras, a representação da Bíblia aberta. Ambas as imagens estavam pintadas de dourado.

Não demorou muito, um rapaz veio me atender. Ele aparentava ter cerca de 40 anos. Era moreno, baixo e vestia uma calça jeans e uma camiseta branca. Calçava um chinelo de dedos. Demonstrou bastante gentileza com um sorriso no rosto e logo perguntou o que eu queria. Ficou meio apreensivo ao saber que eu queria entrevistá-lo, pois dizia não ser o dono do local. Puxou uma cadeira e pediu para eu esperar a proprietária. Seu nome é Cleiton Luís. Trabalha na funerária há seis anos, mas já trabalhou em várias coisas, até mesmo de ajudante de pedreiro. A oportunidade de se envolver com a sua atual profissão surgiu com o convite de sua irmã, que é a dona do estabelecimento. Passou por um treinamento para tornar-se tanatopraxista.

Este profissional utiliza de técnicas modernas, injetando, por meio de máquinas apropriadas, determinado líquido em cadáveres, e drenando seu sangue durante o processo de injeção. Conservando, assim, seus traços como eram em vida. O cadáver fica com aparência saudável, com a face rosada. Há ganho de massa muscular, suas pernas e braços ficam mais grossos e flexíveis e a boca e os olhos fechados. O tempo médio de preparação é de duas horas. Outros métodos como formolização, no qual são aplicados cerca de 500 mililitros de formol diluído em água; embalsamamento, procedimento que consiste na retirada das vísceras; e mumificação, aceita em casos em que o corpo está com mais de cinco dias de óbito e estado de apodrecimento avançado; são utilizados apenas em casos especiais.

Quando as pessoas ficam sabendo do trabalho que Cleiton desempenha, reagem com surpresa, admiração, fascínio, curiosidade. Ele gosta do que faz. Só mudaria de profissão se fosse para ganhar um salário melhor. A remuneração é de 700 reais. Durante todo esse tempo nunca viu ou ouviu nada de esquisito no local. Nem vultos, nem vozes. “Essas coisas só existem na cabeça de pessoas que fantasiam. Mortos não fazem mal a ninguém”, respondeu uma senhora idosa que estava saindo de uma sala.  Ela estava vestida com um longo vestido amarelo. Seus cabelos eram grisalhos e estavam presos. Era branca e usava óculos. Ao me avistar sentada na recepção, olhou-me fixamente com uma expressão de curiosidade sobre minha presença ali. Ao apresentar-me e dizer quais as minhas intenções, prontificou-se a responder minhas perguntas.

Seu nome é Irene Martins. 68 anos. É graduada em enfermagem e especializada em tanatopraxia. Trabalha há mais de 20 anos na profissão. Durante todos esses anos, não tem idéia de quantos caixões foram vendidos até hoje. Começou trabalhar numa funerária por necessidade e após ter passado por um trauma. “Quando meu pai morreu foi maltratado. Trataram ele pior que cachorro. Por isso, comecei trabalhar nessa profissão com meu irmão, para ajudar as pessoas e ser solidária”.  Não são todos os dias que aparecem clientes, passam de cinco a seis dias sem vender nenhum caixão. Os preços são bem variados. Caixões para crianças custam de 100 a 600 reais. Os de adultos variam de 300 a 10 mil reais.  

Apesar de sobreviver da funerária, sente-se feliz quando não aparecem clientes. Seu objetivo não é somente ganhar dinheiro, mas sim ajudar. Confortar pessoas que perderam seus entes queridos na morte. Ao perguntar sobre o que as pessoas falam de sua profissão, debruça-se sobre o balcão de mármore preto da recepção, olha fixamente para o horizonte e diz: “as pessoas que tem Deus e amor acham a profissão nobre. Agora, os fracos de fé e pobres de espírito ridicularizam. Trabalhando aqui não me sinto feliz. Me sinto irmanada”.