DESAFIO INTERCULTURAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA: as aldeias precisam de escolas?

ESSA QUESTÃO GERA DEBATES SOBRE O CONTATO DAS CRIANÇAS INDÍGENAS COM O NOSSO ATUAL SISTEMA DE ENSINO

POR GABRIEL HENRIQUE, MAURO LOPES E MARIANA FERNANDES

Alunos FINAL

As crianças representam 61% dos cerca de 210 mil indígenas do Nordeste

 Aos gritos e cantigas que ecoam pela aldeia logo cedo, a infância mostra-se como um mundo onde a imaginação comanda a roda. A infância indígena é uma fase de aprendizado, sobretudo cultural, nela a criança aprende logo cedo a fazer da natureza a sua escola. Porém, os prédios de tijolos chegaram às aldeias e com eles, outras formas de educação, a nossa forma, e um debate se instaurou desde lá: as crianças indígenas precisam do nosso ensino regular?

Segundo o último censo realizado pelo IBGE em 2010, as crianças representam 61% dos cerca de 210 mil indígenas do Nordeste. No ranking das dez primeiras cidades com maiores populações indígenas na região nordestina, três municípios maranhenses aparecem. Jenipapo das Vieiras, Amarante do Maranhão e Grajaú ocupam a 5ª, 7ª e 8ª posições, respectivamente.

Acerca de 85 km de Imperatriz está a Aldeia São José, uma das mais próximas da cidade. Lá a educação infantil é regida na língua materna até o 4° ano. O ensino nas escolas é baseado principalmente no modo como o povo se organiza, sejam pelos ritos, músicas, alimentação e afins, toda forma de expressão cultural é respeitada. Ainda assim, são ensinadas disciplinas eletivas do currículo regular como matemática e português.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante que os costumes, valores e as tradições devem ser levados em consideração na implementação da educação nas aldeias. A Resolução de n° 5, de 17 de dezembro de 2009, estabelece que a Educação Infantil é opcional. Segundo a Unidade Regional de Educação de Imperatriz (UREI), o Maranhão conta com cerca de 100 escolas indígenas, compreendendo os municípios de Arame, Buriticupu, Montes Altos, Amarante e Bom Jesus das Selvas.

A estrutura curricular das escolas é composta pelas mesmas disciplinas ofertadas nas escolas regulares dos centros urbanos, com o acréscimo do ensino da língua nativa e as disciplinas de Direitos e Artes Indígenas.

Segundo dados do programa Povos Indígenas do Brasil, o Maranhão possui atualmente cerca dez povos indígenas: os Canela Apanyekrá e Ramkokamekrá, Gavião Pykopcatejê e Kykatejê, Tenetehara-Guajajara, os Ka’apor, Krenyê, Krĩkati, Tembé e os Awá Guaja, o último em extinção. Já o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) destaca onze povos no território maranhense, adicionando aos que foram citados, a etnia Gamela.

Sobre todo o aspecto educacional, existe uma discussão em relação à necessidade da interferência da educação regular nas aldeias: a nossa cultura não estaria se sobrepondo à indígena nesse processo, principalmente na fase da infância, onde a criança está formando sua identidade através da vivência na comunidade? Alguns pesquisadores defendem a ideia de que esse contato pode ser danoso.

DESVALORIZAÇÃO OU NECESSIDADE?

A professora da Universidade Federal do Maranhão, Emilene Leite, Doutora em Antropologia Social, diz que cultura e educação se misturam no universo dos pequenos: os cantos, a história da terra, do rio, da chuva e de outros elementos da natureza são pilares de identificação cultural, que caracterizam as crianças indígenas. “Todos os modos utilizados para perpetuar a identidade cultural de uma etnia, dentro ou fora das salas de aula, são educação”, analisa.

A principal justificativa para a interferência do Estado na educação das aldeias é a perda da língua materna indígena. Há muitas comunidades onde as crianças só se comunicam através do português. Dos onze povos indígenas listados pelo Cimi no Maranhão, dez solicitaram ao Governo a presença de professores nas comunidades.

Hoje, nas aldeias, o ensino é bilíngue (língua nativa e o português). Esse sistema é estabelecido para fornecer uma socialização com os não-índios. O coordenador do Cimi, Gilderlan Rodrigues, não concorda com esse processo. “Há uma desestruturação no processo educacional dos povos indígenas, a educação não-índia traz uma desvalorização do que é próprio da aprendizagem dos índios. O que está acontecendo, de certa forma, é um ‘embranquecimento’ da aprendizagem indígena”.

O coordenador do setor educacional indígena da UREI, Carlos Viana, aponta que a interferência dos não-índios nas aldeias tornou os processos de aprendizagem semelhantes aos nossos, assim as crianças começam a aprender que precisam ser preparadas para algo que está além das terras indígenas. “As comunidades viram a necessidade de aprender sobre outras formas por causa da sobrevivência. Com o cotidiano deles se assemelhando cada vez mais a nossa configuração de sociedade, eles buscam a adequação, contudo, para eles, essa necessidade também é um sofrimento”, observa.

O CAMINHO PARA O EQUILÍBRIO

O projeto  Saberes Indígenas na Escola, do Governo Federal, teve início em 2013, através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI). Segundo a Fundação Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), o intuito do projeto é promover a formação dos professores da educação escolar indígena. O programa oferece recursos didáticos e pedagógicos que atendam às diferenças das comunidades indígenas na variedade da língua e da cultura.

O projeto no Maranhão funciona através da UFMA e ainda está “engatinhando”, pois surgiram algumas dificuldades, como a rotatividade de profissionais à frente do projeto em um curto período de tempo. Hoje conta com sua sexta coordenadora, professora Emilene Leite, que assumiu recentemente. “Esperamos que para 2017 o MEC disponibilize um novo recurso para que sejam realizadas ações entre os Krĩkati, Canela e os Gaviões”, acrescenta.

OUTRAS AÇÕES

Uma atividade vigente em Imperatriz, que envolve as crianças indígenas, é o projeto Ação Curumim , que surgiu em 2011 e foi idealizado pela pedagoga Olisângela Bailey. O objetivo é promover  a assistência às crianças nas aldeias. Inicialmente foram iniciativas realizadas a cada dia 12 de outubro, dia das crianças, promovendo oficinas e brincadeiras. Hoje, o trabalho possui uma estrutura especializada para a realização de oficinas com atividades lúdicas, ensino do português, de libras e da língua materna.

Olisângela Bailey comenta ainda que não houve nenhuma relutância por parte das aldeias na realização do projeto, mesmo ele sendo  uma iniciativa de um grupo religioso. “Não queremos de forma alguma acabar com a cultura dos povos indígenas, como muitas religiões têm feito. Queremos que ela seja cultivada, pois é a essência deles”.

 HISTÓRIAS DE QUEM VIVE

Ensino de Jovens no povo Krikati FINALJovens do povo Krikati em sala de aula

Aline (nome fictício) Krĩkati, 10 anos, estuda na escola infantil da aldeia São José  e sempre vai acompanhada da mãe, Michele (nome fictício) para as aulas. Michele conta que as crianças não são obrigadas a comparecer na escola todos os dias, pois o aprendizado mais importante é aquele que se adquire fora da sala de aula. “A escola não tira o momento da família, pois ele é muito importante para a criança, o professor e a mãe precisam trabalhar juntos”, explica.

Silvia Krĩkati, 42 anos, nasceu e foi criada na Aldeia São José, e é professora do ensino infantil há 17 anos. Ela conta que quando era criança não havia oferta da educação infantil como regulamento. Recorda do aprendizado do cotidiano através da natureza e como isso mudou ao entrar em contato com a educação formal na cidade. “Eu, por exemplo, não passei pela fase da adolescência. Com esse contato (urbano) eu aprendi muitas coisas, mas também não aprendi processos da minha própria cultura. Eu sei ler e escrever na minha língua, mas não aprendi os cantos do meu povo”. A professora defende que o cotidiano precisa ser reconhecido pelo Estado enquanto forma de aprendizagem. “A educação infantil indígena que é ofertada no povo Krĩkati tem a finalidade de preservar a cultura do nosso povo, ensinando as gerações”, afirma.

O debate sobre a e educação indígena precisa continuar para que se possa construir seus novos horizontes, com a articulação dos indígenas, autoridades  e sociedade civil. O que os índios querem é garantir formas de preservação da língua e da cultura desde a infância. A própria natureza, as relações sociais e o ambiente que cerca os pequenos devem ser reconhecidos efetivamente como espaços de aprendizagem. Olhar para as crianças indígenas pensando na formação de futuros indivíduos dependentes da cultura não-indígena e dos projetos econômicos da nossa sociedade fere o corpo e o espírito de uma cultura que existiu muito antes da nossa.