Sônia Guajajara comenta sobre a força das mulheres indígenas

 Texto de Luciana Bastos

Fotos de divulgação 

Ao chegarmos em sua casa, pontualmente as nove da manhã, Sonia me recebe na porta com um sorriso e seu abraço apertado como de costume. Tendo chegado de viajem no dia anterior e, apesar de todo o cansaço, estava cheia de disposição para me atender. Sonia tem várias casas, mas as que mais gostam é a da aldeia onde nasceu e a de Imperatriz, que fica no bairro São José. Seu canto é cheio de ornamentos, adereços e fotos de vários povos indígenas. Mulher de luta, ainda exibia em sua pele resquícios de tinta de jenipapo, em desenhos que retratam sua cultura que tem orgulho de ostentar. Nascida em uma aldeia do povo Guajajara – Tentehar, nas matas do Maranhão, na terra indígena Araribóia, nas proximidades de Amarante (MA), Sonia Bone Guajajara tem 41 anos de luta, resistência, suor e lágrimas pelos povos indígenas que representa. Mãe de três filhos: Luiz, Yaponã e Ywara. Foi escolhida por sua tia, Maria Santana Guajajara, anciã da aldeia, para guerrear em favor de seu povo por meio da palavra, o que não significa ser mais fácil. Para se munir de “armas” e cumprir essa missão, Soninha foi à luta. Filha de pais analfabetos que se esforçaram para proporcionar educação aos filhos, estudou dos 10 aos 14 anos cursando o ensino fundamental (antigo ginásio) na cidade de Amarante, no Sul do Maranhão. Para tanto trabalhava de doméstica e de babá. Ao completar 15 anos foi cursar o Ensino Médio em um colégio interno na cidade de Esmeraldas – MG. A pesar de muito longe e com medo de sair de sua cidade e de perto de seus pais, Sonia encarou a oportunidade de frente, e realizou mais um sonho que era buscar novos horizontes.

Em Minas, permaneceu por três anos e cursou o Magistério. Hoje é graduada em Letras, pós-graduada em Educação Especial e coordenadora executiva da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). Seu currículo acumula cargos de chefia em outras entidades de defesa dos povos indígenas. Em 2015, participou do Fórum Permanente da ONU (Organização das Nações Unidas para Questões Indígenas). Em Nova York, fez parte da coordenação da Primeira Conferência de Políticas Públicas Indigenistas e do Acampamento Terra Livre, agora em maio. Estes trabalhos renderam reconhecimento e premiações como Condecoração de “Cavaleiro da Ordem” em 2015 da presidência da República no governo Dilma Roussef. Pelo trabalho e luta contra a PEC 215 no mesmo ano, recebeu do governador do Maranhão Flávio Dino a medalha de “Honra ao Mérito”. Em fevereiro de 2016, foi agraciada, em Imperatriz com a medalha 18 de Janeiro,um reconhecimento do Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos Padre Josimo. Agora em Junho, foi umas das personalidades imperatrizenses escolhida para carregar a Tocha Olímpica. Mulher, indígena e maranhense, Sonia faz ecoar o grito de reconhecimento aos povos originários do Brasil em todos os lugares que vai.

 

Imperatriz Notícias: Qual foi o seu processo de formação enquanto militância dos povos indígenas?

Sonia BoneGuajajara: Desde menina, ouvia falar na tutela e várias barbáries preconceituosas sobre os índios. Como era uma criança e continuo sendo (risos) não entendia bem o porquê daquelas ideias, mas acreditava que as teorias não eram condizentes com a realidade. E quando estava em MG, iniciei-me nos movimentos sociais participando do grêmio estudantil da Fundação Caio Martins,participei de inúmeras apresentações teatrais na escola e nas cidades vizinhas, retratando a realidade do meu povo, debatendo e envolvendo os colegas e sempre mostrando que ser índio não é ser como a mídia e os livros europeizantes das escolas brasileiras dizem. Aprendi muito, mas também fui capaz de ensinar. Em 2001 participei do primeiro evento nacional indígena que foi a pós-conferência da Marcha Indígena, para discutir o Estatuto dos Povos Indígena em Luziânia-GO, perto de Brasília.  A partir desse Encontro fui ampliando a minha visão em relação a luta indígena, conheci muitas pessoas ligadas ao movimento,que foram me mostraram a importância do movimento organizado. Tudo isso causou em mim uma vontade de ser mais útil, de participar mais das discussões da política indigenista, pois até então tinha uma participação somente a nível local é estou nesta luta até hoje e agora levando nossa problemática para todo o país.

 

IN: Ultimamente, percebemos uma articulação considerável no Maranhão, como isso ocorreu?

SBG:Os povos do Maranhão, a muito tempo se articula, mas de forma mais passiva, em 2003, com o apoio de outras lideranças indígenas é do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, depois de muita luta,realizamos o 1° Encontro Estadual dos Povos Indígenas do Maranhão, com algumas autoridades comoo presidente da FUNAI. Ali foi o pontapé inicial para a criação do movimento indígena organizado no Maranhão. Fizemos um trabalho de reativação, fortalecimento e estruturamos a sede da COAPIMA, realizamos várias atividades com os povos, como cursos, seminários, encontros, oficinas, palestras, entre outros e isso ajudou a reafirmamos a importância da luta indígena e mantivemos acesas as chamas da nossa tradição e mostramos que é possível incendiar o mundo com a nossa vontade e com o sonho de justiça social.

 

IN: Você teve uma fala de destaque no Fórum Permanente da ONU, qual foi o seu recado para todas as nações?

SBG:No Fórum Permanente da ONU – Organização das Nações Unidas, em “New York, New York” “risos” eu tive a oportunidade, ao perceber que os discursos orbitavam em torno dos EEUU, disser para o mundo que os EUA não são o centro do mundo como muitos pensam e eles mesmos apregoam, mas que o centro do mundo é a Amazônia, pois se acabarem com as nossas matas, riquezas naturais não haverá Estados Unidos, ou Nova Iorque que sobreviva. Tivemos uma participação de destaque sim, com conversas com relatores, e organizações internacionais sempre atentos para as nossas apresentações, dos casos emblemáticos em relação à falta de políticas públicas adequadas aos povos indígenas aqui no Brasil.

 

IN: Como os países exteriores veem as causas dos povos indígenas no Brasil?
SBG:
É muito complexo tanto fora como aqui e tem maior visibilidade nos países menores da Europa. Eles têm maior interesse pelas causas indígenas e quando tem alguma manifestação ou evento maior no Brasil, eles fazem algum manifesto de apoio aos povos originários. Ainda assim é muito difícil a capitação de recursos para fazer trabalhos em prol das causas indígenas como aqui.

"Nós, os Guajajara - Tentehar ocupamos 11 Terras Indígenas no Maranhão e somos o povo mais numeroso do estado"
“Nós, os Guajajara – Tentehar ocupamos 11 Terras Indígenas no Maranhão e somos o povo mais numeroso do estado”

IN: Qual a atual situação do seu povo?

SBG: Nós, os Guajajara – Tentehar ocupamos 11 Terras Indígenas no Maranhão e somos o povo mais numeroso do estado. Com uma história demais de 400 anos de contato podemos afirmar que apesar da exploração, do escravismo e do domínio europeu que exterminou povos, sufocou culturas e expulsou nações, somos um povo resistente, pois mantemos vivas as nossas tradições.Atualmente vivemos uma situação de risco dentro da própria casa, pois as nossas Terras embora demarcadas, registradas e homologadas, somos ameaçados, caçados e assassinados por invasores– fazendeiros, madeireiros e mercenários que vivem da pistolagem, que destroem, roubam e matam e ainda tentam acabar com os nossos costumes e tradições, ameaçando, assim, a vida de homens e mulheres indígenas de nossa região. É como se não bastasse, há ainda a política de desenvolvimento do país que é baseada somente em crescimento econômico, financeiro e capitalista que abandona, isola, massacra e expulsa pessoas de suas Terras, tudo vale para construir hidrelétricas para geração de energia que beneficiará as multinacionais e os donos do Capital.

 

IN: Qual a importância da demarcação de terras indígenas?

SBG:Hoje a Amazônia vive assaltada não mais por invasores mas por decisão, imposição e determinação do próprio governo Federal como é o caso de Belo Monte, que continua acelerando o crescimento e impedindo o curso natural do Rio XINGU, as hidrelétricas de Teles Pires, Tapajós, Madeira mesmo contra a vontade da população brasileira seguem em frente, escravizando trabalhadores, expulsando indígenas, pescadores e pequenos agricultores que perdem toda uma história de vida e dignidade por caprichos de um governo que afirma que esta é a única forma de desenvolver a região, sem contar os casos de conivência com as grandes mineradoras com e o caso de Mariana. A terra na posse dos indígenas, servem não somente de casa, mas como conservação de culturae o nosso modo de vida, não agride a natureza, nos preservamos por que dependemos da terra para viver, assim como todo do planeta.

 

IN: Como você avalia as questões indígenas no Brasil? O regresso das conquistas e a PEC215?

SBG:Como temos um congresso muito forte na área dos ruralistas, eles estão tentando fortemente impedir demarcações. E isso tem travado muito todos os processos. Eles querem com a PEC 215, que essa responsabilidade de demarcação seja deles, do legislativo, do Congresso Nacional, porque estando nas mãos deles, não vão mais considerar nenhum território indígena, e ainda vão tentar rever os que já estão demarcados. Então isso está totalmente parado. É também perigoso porque se isso passa realmente para o Congresso é o mesmo que dizer que o Brasil perde seus povos originários, por que com o território garantido podem desenvolver seu modo de vida, se perdermos isso, perdemos também os povos e as culturas.

IN: Qual teu olhar sobre a educação indígena ela respeita as particularidades dos povos?

SBG:Tem uma lei específica assim como a Constituição Brasileira que garante as escolas bilíngues nas aldeias e lei que garante o estudo das culturas dentro das universidades e escolas públicas. E isso não acontece, nas aldeias raramente, por mais que tenha esse direito o próprio Estado, que é responsável pela educação indígena não consegue garantir o professor bilíngue para todas as escolas. A escola ainda não consegue absorver, não consegue ainda chegar nas aldeias ou mesmo nas universidades, tratar o indígena como uma pessoa que tem uma cultura diferente. Tem um amigo meu que começou a estudar em uma universidade de São Paulo, ele ficou dois anos. Perguntei para ele por que saiu do curso de Direito. Ele falou: “Por que eu estava deixando de ser índio na universidade. Por que queriam por que queriam que fosse branco. E quero manter minha cultura, quero estudar, mas em um lugar que de espaço para me expressar”. Então, eu acho que é isso, a universidade tem que trazer o conhecimento desse mundo acadêmico, mas tem que dar espaço para o indígena levar sua expressão para dentro, com a presença de mais indígenas. Tem que ter um espaço de troca. Se tem cultura diferente, isso tem que ser muito considerado.

"Hoje a Amazônia vive assaltada não mais por invasores mas por decisão, imposição e determinação do próprio governo Federal "
“Hoje a Amazônia vive assaltada não mais por invasores mas por decisão, imposição e determinação do próprio governo Federal “

IN: Qual sua opinião sobre a “infiltração” da religião na cultura dos povos?

SBG:Olha, essa questão da religião é muito grave. Por um lado, eles realmente impõem. Tentam mostrar para o indígena que usar urucum está errado, que usar jenipapo está errado, que tem que seguir aquela doutrina.  Fazem de uma forma que acaba convencendo o indígena que ele está errado. Por outro lado, eu acho que tudo tem que ser dosado. Alguma aldeia tinha ou ainda tem a entrada de álcool e drogas e outras influências. Às vezes, a religião tem inibido um pouco disso, mas tem que equilibrar. Ninguém quer proibir a religião na aldeia, por que cada um tem a liberdade de escolher. Só que da forma como está hoje é muito preocupante porque está impregnando em todos os povos no Brasil, de uma forma muito manipuladora, que acaba fazendo com que se perca muito das diferentes culturas. Tem que ter um certo cuidado para não deixar que se sobreponha à cultura.

IN: Aex-modeloGisele Bündchen, conhecida internacionalmente, esteve com você em Brasília, (08/06/16) tirou fotos, postou nas redes sociais, como foi esse encontro?

SBG: Como ela mesmo disse, foi um encontro de almas, (risos) ela veio como correspondente do canal National Geographic para gravar a segunda temporada do programa Yearsof Living Dangerously que investiga o desmatamento e as mudanças climáticas, em especial no Brasil nesta edição. E aí falamos justamente sobre a importância dos povos indígenas na preservação das últimas grandes áreas verdes do país, a necessidade do equilíbrio da floresta e de todo seu ecossistema equilibrado para a existência de toda humanidade.

IN: Como você recebeu a notícia que foi um dos escolhidos para levar a Tocha Olímpica em Imperatriz?

SBG: Com muita alegria, amo essa cidade e apesar de todas minhas viagens, sempre dou uma escapadinha para cá, recarregar as energias com minha família e meu povo, sem contar que é um reconhecimento que nós, os indígenas, fazemos parte desta terra, Imperatriz e circunvizinhada de várias aldeias e sinto que e uma homenagem a todos estes povos do Maranhão.

IN: Como a sociedade pode contribuir com as causas indígenas que são tão urgentes no nosso país?     

SBG:Só queremos criar nossos filhos e exercer nossa cultura livremente, isso é tão simples. Porém, para isso, estamos indo de encontro aos interesses de grandes empresas e fazendeiros com grandes construções. É pasto o que um dia foi mata, foi rio, foi nosso lar. Tantas catástrofes naturais, o clima enlouquecendo… Tudo isso é fruto dessa degradação desenfreada, da busca incessante pelos lucros e esquecimento de todos nós, seres humanos. A vitória não é só nossa, é de todo um planeta.