“Os casos mais difíceis são quando o homem é evangélico, porque os níveis de crueldade são muito altos”: conversa com Sueli Barbosa, coordenadora do Centro de Referência de Atendimento à Mulher

Repórteres: Carla Guerrero e Rayssa Silva

Fotos: Carla Guerrero

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos (MDH), foram registradas, no primeiro semestre do ano de 2018, quase 73 mil denúncias de violência contra a mulher. E em Imperatriz, de acordo com Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), foram registrados 696 casos, até o final do ano de 2018.

Neste mesmo ano, a coordenadora do Centro de Referência de Atendimento à Mulher (Cram), Sueli Brito Barbosa, contribuiu com o Imperatriz Notícias apresentando dados coletados a partir do atendimento de mulheres vítimas de violência no Cram, para a construção de uma matéria titulada como “Maioria das mulheres agredidas em Imperatriz é evangélica”, a qual descobrimos que 48% das mulheres que sofrem violência e que procuraram o Cram, eram  evangélicas. O assunto gerou muitas discussões nas redes sociais e a própria Sueli Barbosa menciona ter sido abordada sobre a autenticidade dos dados e de lá para cá tem sido convidada a conversas na comunidade evangélica nas igrejas.

Sueli Barbosa começou no movimento social como militante no Centro de Defesa dos Direitos Humanos Padre Josimo, em 2001, hoje em dia é graduada em serviço social e atua como coordenadora do Cram, de Imperatriz, há 8 anos. Além disso, Sueli Barbosa se autodeclara feminista, no entanto, após receber o cargo público, abriu mão da militância nas ruas. “Não milito mais, porque não é uma coisa coerente para você que está à frente de um serviço, exercendo um cargo de confiança e como sou coordenadora, não sou atuante no movimento”, justifica.

Nesta entrevista, Sueli Barbosa esclarece as dúvidas acerca da violência contra a mulher, falando das dificuldades que as mulheres enfrentam até conseguir realizar a denúncia baseando-se nos relatos das próprias vítimas. Confira:

 

Imperatriz Notícias (IN): Além do Cram, você tem vínculo com algum movimento ou instituição de ajuda e apoio à mulher?

Sueli Barbosa (SB): Bom, na cidade a gente praticamente não tem estrutura que dê esse apoio, que trate dessa parte de orientação. Fomos procurados no ano passado pelo pessoal da casa Radija Barbosa, que é uma casa com a proposta semelhante à do Cram, mas todo trabalho é voluntário. Então, hoje em Imperatriz não temos outros grupos, mas, temos os órgãos que compõe a rede, porém, não oferecem esse tipo de atendimento, essa parte psicológica e social. Nos órgãos que têm o serviço social ou psicológico eles são imparciais, eles ouvem tanto o agressor quanto a vítima.

IN: Você disse que esses outros grupos de apoio também ouvem o agressor. Você acha que o Cram deveria fazer o mesmo?

SB: Não, porque assim, a própria lei determina que tem que ser criado espaço de acolhimento para as mulheres. Alei Maria da Penha determina isso, ela também determina que sejam criados espaços para os homens. Isso não quer dizer que eu sou contra atendimento ao homem, a própria lei é tão boa que pensou neles, está lá que tem que ser criado, agora são pouquíssimos os espaços. Mas no mesmo espaço não funciona, nós lidamos aqui no dia a dia com situações em que são muito íntimas e o nosso objetivo é fortalecer essa mulher, para ela não desistir da denúncia e não se envergonhar porque ela é vítima. Então não daria para a mesma equipe fazer isso com o homens e mulheres, porque a gente não quer trabalhar para reconciliação, e não é esse o propósito, o propósito é dar assistência as mulheres em situação de violência.

IN: De acordo com a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), existem casos que a vítima é diferente, mas que o agressor é o mesmo, que ao começar uma nova relação persiste na agressão. Na sua opinião, o que pode resultar nisso?

SB: Justamente a falta desse atendimento, desse acompanhamento. É o que a gente sempre diz aqui, as mulheres vêm, aí elas resolvem separar, mas, pelo fato de terem sido vítima do João elas não deixam de ser potenciais vítimas do Antônio, porque o Antônio talvez já vem de uma outra relação que ele também agredia. Não é como se ele só fosse agressor porque já vem de outras relações ou porque a agressividade está dentro dele, mas, é justamente por não trabalhar isso que ele vai ser agressivo de novo, que ele continua acreditando que mulher é objeto e que a partir do momento que ele casa, ele comprou sua posse, é dele. Então você precisa desconstruir isso nele, pois continuam convictos de que não são agressores. Aí, o que as mulheres vão pensar? Poxa, mas eu casei com o João e não deu certo, aí casei com o Antônio, não deu certo novamente, então, eu que não presto. Mas, ela esquece que o João e o Antônio já eram agressores e eles só repetiam com ela o que eles já fizeram com outras.

” pelo fato de terem sido vítima do João elas não deixam de ser potenciais vítimas do Antônio, porque o Antônio talvez já vem de uma outra relação que ele também agredia”

IN: De acordo com os dados de 2018 do Cram, 48% das mulheres que sofrem violência e buscam atendimento, são evangélicas. Na sua opinião, por que as mulheres evangélicas são a maioria?

SB: Na verdade, a questão da religião é só um detalhe, mulheres de todas as religiões sofrem violência. Por que que às vezes a gente se atenta mais para as evangélicas? Porque muitas das que a gente ouve aqui se mantém na violência, naquele ciclo, porque ouvem dos pastores que é pouca oração, que é o inimigo agindo, então, o que nos chama atenção não é o fato de serem evangélicas, mas, por que as evangélicas são mantidas ali, pois não pode separar, fica feio na igreja. Não é necessariamente a religião, o que nos preocupa é ouvir delas, desses 48%, porque elas se mantiveram ali 20, 30 anos. Eu já atendi mulheres aqui vítimas de violência durante 35 anos de casamento, evangélicas, isso é preocupante. Esse número nos preocupa mais em razão do motivo delas ficarem na violência, porque elas acreditam naquilo, leem e interpretam daquele jeito, ou ouvem de um pastor, de uma  missionária, aí ela vai orar e enquanto isso ela é estuprada, espancada, negligenciada e abusada todos os dias, mas, pra ela está lutando pelo casamento dela, porque mulher sábia edifica sua casa.

IN: Ao se depararem com os dados, a população se questionou se as mulheres evangélicas são as que sofrem mais agressão, ou se elas são as que mais procuram apoio. O que você acha sobre isso?

SB: Como eu estou dizendo, elas estão naquele sofrimento há muito tempo, chega uma hora que não dá mais pra continuar.Os casos mais difíceis que encontramos aqui são quando o homem é evangélico e a mulher é evangélica, porque os níveis de crueldades são muitos altos. Porque eles castigam muito, usam versículos para castigar a mulher, para ela se sentir culpada daquilo. Isso é muito cruel, porque eles se referem ao que elas entendem como ser a postura de uma mulher evangélica durante o casamento.

IN: Na sua opinião,o que a igreja deveria fazer a respeito disso?

SB: Eu disse isso na igreja Batista, dia 9 de março deste ano, me chamaram para fazer uma roda de conversa com os jovens da primeira igreja Batista daqui e uma das perguntas foi essa, o que a igreja poderia fazer para enfrentar a violência? A minha resposta é uma só: abrir a igreja para a discussão. Eu disse isso lá, daqueles jovens e daqueles adultos que estavam ali me ouvindo, mais da metade foi ou será vítima, porque para eles não é violência física e não é agressão aquele controle de dizer:“Você só pode ir até ali, você tem que ser assim’’, isso é violência sim!Mas as pessoas nem veem, porque acham que violência é só agressão. Quando você abre para uma discussão, você vai ouvir com mais sensibilidade aquela mulher, que está ali na frente do pastor, olhando ou pedindo para Deus ajudar e naquele momento ele é a figura que representa Deus. Violência contra  mulher tinha que ser discutido em todas as faculdades, todas as escolas desde o ensino das crianças, cada um com a sua linguagem, mas, vamos discutir, então, quando todo mundo perceber isso e passar a fazer, aí a gente vai mudar de verdade, enquanto isso não acontecer vai ser só enxugar gelo.

IN: E o que você acha dos usos da “palavra de Deus’’ para justificar a violência?

SB: É distorção, é muito triste você usar a palavra lá, pois aquilo ali muitas pessoas seguem à risca e as mulheres principalmente, obedecem. E você usar, olha, não existe pior crueldade do que você manipular o outro a partir de uma fé, isso é triste. Já atendi uma moça que chegou desesperada porque o marido batia, humilhava e depois ele ia pegar todos os versículos da bíblia para sustentar a violência, e ela evangélica criada dentro da igreja, com aquela angustia dizendo: eu estou errada, estou pecando. Porque os homens fazem isso com muita facilidade, os homens tem esse poder com muitas mulheres que são vulneráveis, e aí as mulheres vão lá sofrer, se submetem, aceitam, se mantêm ali porque passou a vida inteira ouvindo que mulher sábia edifica o lar, então, se eu sou sábia eu vou esperar e orar, enquanto isso, ela está sendo machucada, enquanto isso, ela está à beira de uma depressão, enquanto isso, ela não dá conta de criar os filhos e orientar,pois ela não está bem.

IN: Você segue alguma religião?

SB: Assim, eu não pratico, não vou frequentemente, mas eu me identifico católica. Desde criança, eu já frequentei muito, mas também observo algumas coisas que os católicos fazem errado e não é Deus, não é nada, são as pessoas que estão lá. Eu sou triste para ir para missa, porque eu fico olhando para o padre e qualquer coisa que ele fala eu já penso: opa, está errado, não é assim não. Hoje eu já vejo com outros olhos.No meu processo de me descobrir feminista, foi uma das minhas maiores angustias, como é que pode eu defender aborto, meu deus, se eu estudei o catecismo inteiro dizendo que não pode, por que é pecado. Hoje, eu já frequento menos, tenho muitas críticas a várias posturas que a igreja adota, mas não condeno, também como não condeno outras religiões.

IN: Você se considera feminista?

SB: Eu sou feminista com muito orgulho. Acredito que as pessoas têm uma visão distorcida do movimento, porque todo movimento tem uma parte radical e uma parte mais calma, dentro do feminismo não é diferente. Existem aquelas feministas mais radicais, assim, são para os outros, porque pra mim, cada um age do jeito que quer, se quiser tirar a roupa para manifestar, é livre, se não quiser, também é livre, então, as pessoas vão se comportar de modos diferentes diante de uma situação. Mas isso não deve nos fazer inimigas. Se a gente pensa na mesma linha, então vamos atuar, cada um do seu jeito. Por isso que eu sou feminista, porque eu acho que a liberdade e o respeito devem estar acima de tudo, isso para as relações na sociedade, os casamentos, tem que ter respeito eu tenho que ser respeitada na minha individualidade.

IN: E algum grupo de feminismo, você faz parte?

SB: Bom, minha origem na militância foi no Centro de Defesa dos Direitos Humanos Padre Josimo, em 2001. No centro eu aprendi muita coisa, mas, hoje não milito mais, porque não é uma coisa coerente para você que estar à frente de um serviço, exercendo um cargo de confiança e como sou coordenadora, não sou atuante no movimento.

IN: Segundo o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, o número de mulheres vítimas de homicídio em 2018 sofre uma queda de 6,7% comparado a 2017. Você acha que o feminismo é um movimento que ajuda no combate ao feminicídio?

SB: Com certeza. A lei Maria da Penha, ela foi toda pensada a partir da ótica feminista, foram as feministas que contribuíram para a lei existir. Então isso é sem sombra de dúvidas, o feminismo faz toda diferença. Eu ouvi essa semana pessoas comentando que a violência aumentou, não sei, será que ela não está apenas se tornando mais visível? Por que isso? Porque tem mais informação. Hoje, é mais fácil filmar um homem agredindo uma mulher, em qualquer espaço que você estiver, basta você querer. Então, o feminismo é responsável por essa mudança. Outra coisa que eu acho importante frisar no movimento feminista, é que ele é muito agregador com todos os grupos que tem pessoas que se identificam como feministas, por exemplo, são aliados dos grupos LGBTS e entre outros, que precisam de apoio.

IN: Sabemos que a lei Mariada Penha também oferece apoio a casais lésbicos que sofrem violência.O que você acha dessa abertura a um público maior?

SB: Eu acho formidável! Inclusive, nós temos casos de mulheres aqui, de casais lésbicos sendo atendidos, eu acho super bacana. Como eu digo para as meninas, a gente não tem que fazer distinção, amor não tem sexo, você tem que respeitar isso. Se eu estou aqui eu tenho que estar aberta, porque não posso me preocupar se é gay, se é isso e aquilo, não:meu trabalho aqui é para quem precisa. Eu acho fantástico, porque é mais um agravante, a gente sabe que ser homossexual em um país como o nosso é um desafio, e aí além disso, você ainda viver em situação de violência, o sofrimento é duplo. Então é um grupo que a gente precisa sim acolher. A lei é massa, eu amo a lei Maria da Penha, tudo que tem nela é perfeito, na minha concepção é perfeito, o que falta é as autoridades, quem tem o poder, efetivar ela, dar estrutura, qualificar, para a gente ter mais retorno, vamos caminhando.