Entrevista com Xavier Jean Marie Plassat, membro da Comissão Pastoral da Terra

 Por Daiane da Conceição Silva e Dayana Batista da Silva

 

“Temos que restaurar a capacidade do trabalhador de ter direito e lutar contra tendências tão típicas de uma economia toda voltada ao ‘liberalismo’, e tornar todo trabalhador como se fosse um trabalhador independente”. Diz Xavier Jean Marie Plassat

Nascido em 1950 e graduado em ciência política em Paris em 1970, conhecido como Frei Xavier Plassat é frade dominicano francês que mora atualmente no Brasil cidade de Araguaína-Tocantins, conquistou em 2008 o  Prêmio Nacional de Direitos Humanos. Sendo membro da Comissão Pastoral da Terra desde 1989. Xavier Plassat dedica-se a erradicação do trabalho escravizado dentro dos campos.

Em entrevista ao Imperatriz Notícias, Xavier compartilhou as experiências de seus trabalhos dentro Comissão Pastoral da Terra, advinda de princípios católicos, a CPT iniciou seus trabalhos durante a ditadura militar e possui vínculos com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Foi lançada com o objetivo de defender os trabalhadores do sistema capitalista da época, e tem como principal objetivo lutar pela liberdade dos trabalhadores que vivem em condições semelhantes ao trabalho escravo dentro de propriedades rurais.

 

Imperatriz notícias: Xavier, quando e como surgiu a vontade de trabalhar juntamente com comissão pastoral da terra no brasil?

Xavier: A vontade de trabalhar com a comissão pastoral da terra surgiu para mim a partir de um encantamento. Não tinha muitas razões para nos encontrarmos. Eu francês, e militava nos movimentos de ação católica da juventude. Tínhamos referência sobre o que acontecia na américa latina nos anos de 1960, 1970 e 1980 era de importância a todo planeta, especialmente à nós cristãos. Naquela época resolvi trabalhar nos dominicanos, tive de encontro com pessoas que lutavam contra a ditadura militar, e fugiam da polícia.

Foram presos e bastante torturados alguns deles, o frei Tito de Alencar Lima veio parar como refugiado político depois de expulso do Brasil, retirado da prisão em troca de um embaixador da suíça que havia sido sequestrado. Veio parar em nossa comunidade, convivi com ele nos tornamos amigos, e presenciei o seu sofrimento com marcas de torturas que prevaleceram em sua alma. Ele via em todo lugar seu torturador, chamando-o a se entregar, o tratando das piores maneiras, um dia ele cometeu suicídio, e para mim foi terrível, aconteceu no ano de 1974, foi bastante noticiada na época.

Nove anos depois o Brasil começou a despertar contra o regime militar. Logo após resolveram pedir para nós a organizar a volta dos restos mortais do Frei Tito, foi assim que conheci o Brasil, foi assim que comecei a entrar em contato com pessoas que trabalhavam no Brasil, entre elas um confrade dominicano, advogado que trabalhava no atual Tocantins, Goiás, Porto Nacional e todo Bico do Papagaio.

Fui à Goiás e conheci o trabalho da CPT na qual o Frei Henri Burin des Roziers havia ingressado vindo da França para se dedicar a isso. Então eu conheci as lutas de resistência dos posseiros, do trabalho de amor, de solidariedade. Em janeiro de 1989 embarquei no Brasil para uma experiencia de alguns anos, e nesse tempo já se passaram 33 anos trabalhando juntamente com a Comissão Pastoral da Terra.

 

Imperatriz notícias:  Qual a forma que a CPT busca para resgatar os trabalhadores que vivem em situações análogas às da escravidão?

Xavier:  A forma que a CPT busca para resgatar os trabalhadores que vivem em situações análogas as de escravo é bem simples, não somos o estado que tem poder de ir às fazendas, nas carvoarias resgatar as pessoas de tirá-las da escravidão, somos aqueles que podemos abrir o olho e dar voz a quem tem a voz calada, ou proibida de acessar os meios de comunicação as políticas públicas e a vida social normal.

Nosso trabalho desde sempre tem sido de ficar atento e vigilante, detectar as situações que são de violações de direito e junto com quem está sofrendo levantar voz, não tomar seu lugar, mas, associar nossa voz á dele para que seja encaminhada sua denúncia, já posta em andamento os mecanismos de alerta, e fiscalização.

Mais de 40% dos 5mil casos de trabalho escravo identificados no Brasil partiram de ações da Comissão Pastoral da Terra, não dela, mas de trabalhadores que procuraram ajuda, pediam socorro. Nós conseguimos avançar nesse sentido, obrigando aos poucos ao estado que inicialmente recusava a ver a realidade desse trabalho escravo.

Em 1970 temos o Bispo Dom Pedro que lança uma carta pastoral alertando, denunciando a situação do trabalho escravo em Mato Grosso, mas, vai custar 25 anos até o governo em 1995 adotar políticas de combate ao trabalho escravo, reconhecendo a realidade das denúncias acumuladas durante esses 25 anos, principalmente para a CPT.

 

Imperatriz notícias:  Qual seu papel como membro da Comissão?

Xavier:  O meu papel como membro da Comissão Pastoral da Terra é o seguinte: Estou trabalhando no estado do Tocantins e, por muito tempo, estive na região do Bico do Papagaio – Sítio Novo (TO) atendendo as comunidades rurais e da região toda, algumas em situações de luta para regularizar sua terra, mas a maioria já assentadas e buscando com elas alternativas para garantir que essa luta pela terra pudesse gerar sustentabilidade, gerar uma vida digna, uma renda. Então, era toda uma problemática como a comercialização, da produção, tudo de maneira sustentável dessas terras. Nós trabalhamos muito, nessa época, com APA-TO.

A CPT costuma articular muito, e não tem todas as competências e não faz o trabalho no lugar das pessoas, ela tenta promover o “protagonismo” dos camponeses, dos grupos de jovens, mulheres, de homens, da comunidade toda. Com isso, aos poucos fui me especializando numa pauta mais particular que surgiu, e preferi atender que era a questão do trabalho escravo.

Então o meu trabalho vai de um básico até essa outra ponta, e no meio entre produzir informação, divulgar, consolidar os dados, criar estatísticas, vem o mostrar. Por isso nossa campanha se chama “De olho aberto para não virar escravo”. Isso que enche meu dia a dia, pode-se dizer, então esse trabalho se faz no coletivo dessa campanha, de vários agentes, precisamos pensar isso juntos, da mesma maneira nossa equipe tem um plano de trabalho, juntos fazemos periodicamente planejamento e avaliação do nosso trabalho.

 

Imperatriz notícias:  Quais as situações mais tristes vivenciadas por você em todos esses anos de trabalho?

Xavier:  Se me perguntam sobre situações mais tristes presenciadas por mim, por nós, por todos em todos esses anos de trabalho, bom, eu não gostaria muito de ter que procurar na minha memória coisas tão tristes assim de pessoas tão importantes em nossas vidas e que um acidente, uma violência, um assassinato, um atentado levaram a vida deles.

E nós lembramos de gente que foi muito importante na luta no Tocantins, companheiros de lideranças anteriores na defesa dos trabalhadores que conheci quando trabalhava no Sul do estado, região de Nova Horizonte, Pirenópolis, e até de pessoas que cheguei a conhecer como o Padre Josimo e a gente não se conforma nunca, “né”, e outras pessoas que chegamos a conhecer um pouco longe como a irmã Dorothy, que era pra ter ficado em nossas articulações, era ela quem era da CPT no Pará, em Anapu. E outros tantos, mas eu lembro também de um jovem que tanto ajudou no combate ao trabalho escravo e ele era rapper, ele criava músicas, rap, e quando ele conheceu a nossa campanha se encantou, literalmente, e perguntou: “eu posso trabalhar com vocês?”, e ele trabalhou como voluntário conosco, colocou sua arte a serviço da luta contra o trabalho escravo, o nome dele era Chaguinha e, infelizmente, uma doença rápida o levou, era muito novo para ir embora, ele não tinha nem trinta anos e a gente não se conforma mas, a luz que ele trouxe em nossa caminhada permanece.

Agora outro, eu quero me lembrar de mais momentos que me deixaram comovido. Um dia bate na porta um trabalhador que se chamava Zacarias, o conhecia há muito tempo e ele havia sido resgatado do trabalho escravo. Certa vez, ele me diz: “Xavier, eu cheguei, olha esse velho que está comigo de nome Edorval, ele tá meio “sebo” mas eu resgatei ele do trabalho escravo há dois dias no interior de São Paulo e prometi para ele que levaria ele e seria tratado igual fui tratado. E ele “ta” aqui, eu quero que vocês cuidem dele”. Achei essa situação tão fantástica, tão impressionante e a gente, é claro, abriu as portas da CPT.

E ver esses dois, Zacarias que não tinha seus quarenta anos e esse velho que parecia ter sessenta e acabado de trabalhar tantos anos, tratado pior que animal como nos contou, naquela fazenda, onde ele fazia de tudo e não ganhava nada. Essa situação achei tão linda, essa solidariedade desse companheirismo de passar para frente e dizer: “Xavier, eu resgatei esse cara e quero que tratem esse como eu fui tratado”, então essas situações nos mostram sempre a vontade de continuar nessa luta, para nós elas são animadoras, no sentido forte da palavra.

 

Imperatriz notícias:  Em relação ao Maranhão existe um grande índice de pobreza, quais os trabalhos desenvolvidos dentro do estado, e de que forma são executados?

Xavier:  No Maranhão, especificamente é verdadeiro, há o índice de pobreza, de discriminação e o racismo estrutural que é aquele que coloca sempre do mesmo lado da violação de direito o afrodescendente homem, mulher e criança, é elevadíssimo, e não é à toa que o Maranhão tem sido o estado entre os maiores exportadores de mão de obra encontrados com o maior número de escravo em outros estados do Brasil e mesmo dentro do próprio estado. Então, depois de observar esse fluxo de migração, de analisar de onde vinha principalmente, de conhecer melhor o perfil desses trabalhadores, nós criamos um programa e temos lá uma equipe que faz um belíssimo trabalho.

E isso envolve muitas pessoas, agentes, agentes sociais, sindicatos, empresas, bairros, comunidades, articuladores e lideranças comunitárias, para tentar buscar caminhos de um plano de vida digna que possa garantir que a migração não se torne uma coisa forçada, a migração em si não é um mal, um pecado, claro que não, mas ela é bem pensada e não o resultado de uma decisão por falta de alternativa. Então esse trabalho é realizado, de forma muito experimental ainda, no interior do Maranhão. Por muito tempo fizemos muito trabalho ainda graças a enorme parceria da CDVCH que continua fazendo um belíssimo trabalho.

 

Imperatriz notícias:  Mesmo após abolição da escravatura e com tantas leis trabalhistas que conquistamos, por que o trabalho escravo ainda persiste em continuar dentro do Brasil?

Xavier:  Foi uma abolição no papel, para ser honesto. Ela manteve os trabalhadores fora da terra, fora do acesso a terra. Essa miséria estrutural foi se repetindo de geração em geração. A gente continua vendo a discriminação histórica repetindo relações desiguais.

Foram criadas leis importantes, o Brasil tem uma das legislações mais avançadas do planeta em relação ao trabalho escravo. Escravo é aquele que é mantido em situação de submissão, de violação de sua dignidade de sua pessoa humana, que é tratado como coisa, pior que animal como diz muitos trabalhadores. Temos tantos relatos em memória de cortadores de cana que foram obrigados a cortar um número incrível de cana, toneladas e toneladas. Se matando, literalmente.

Imperatriz notícias: Há algo que poderia ser feito em relação as leis trabalhistas dentro do atual governo?

Xavier: No governo que vai entrar em primeiro de janeiro tem muita coisa que pode ser feita. Essa atenção aos crimes e a conexão entre eles, o crime ambiental e o crime trabalhista muitas vezes estão conectados. Se a fiscalização ambiental é destruída como feito no governo recente a ponto de estar faltando muitos editores fiscais do trabalho, 40% do total que deveria ter.

Imperatriz notícias: Então, fizemos muitas perguntas ao longo da entrevista, mas queríamos saber o que você acha importante que deveríamos saber, que não perguntamos a você?

Xavier: O que motiva, o que afinal de conta que mantém a chama acesa, o que afinal de conta apesar de tanta frustação e fracassos faz com que você continua acreditando que algo é possível? Eu sei que minha chama continua acesa, e eu sei o que acende essa chama é o rosto de muita gente, o olhar de muitas pessoas que eu sei que se eu não tenha coragem de olhá-las no olho e ouvir o seu grito, eu não mereço mais nem me virar para aquele que se chama Deus pai nosso.

O único problema que nós temos que prestar conta na verdade em nossa história, essa pergunta é bem simplória, muitas vezes o Papa Francisco disse uma frase bem simples; o que você fez para seu irmão? Onde está a tua irmã? Se você não é capaz de reconhecer ele que é teu irmão, tua irmã você está negando a si mesmo como filho de Deus.