“Eles viram na filosofia um espaço para desabafarem”: professor maranhense salva vidas por meio do diálogo

Texto: Daiane Silva

Dayana Batista

Jacqueline Nascimento

Fotos: Acervo pessoal professor Ricardo Coelho

 

Inspirado na obra O si-mesmo como outro (1990), do filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005), Ricardo Coelho, professor de Filosofia do Centro de Ensino Caminho do Futuro, em Imperatriz, criou e mantém, desde 2014, um projeto chamado “Uma análise sobre a valorização da vida”, também conhecido como Caldo da Amizade. O objetivo é estimular que jovens com tendências à automutilação e suicídio encontrem o real valor de sua existência, preparando todas as etapas de um cachorro-quente ou de um caldo e entregando para grupos de pessoas carentes. “Comecei a estudar isso, principalmente a ética do autor Paul Ricoeur, inclusive o filho dele se suicidou”, explicou, em entrevista coletiva a estudantes de Jornalismo da UFMA.

A depressão tem sido cada vez mais comum entre os jovens. Dados coletados pela Organização Mundial de Saúde apontam que 11,5 milhões de brasileiros sofrem com este problema, o que coloca o Brasil em 5° lugar na lista mundial. Diante de um quadro de pais alcoólatras, dependentes químicos, separação familiar, brigas entre irmãos e, principalmente, a crise de identidade, o professor e filósofo Ricardo Coelho resolveu envolver os estudantes com um trabalho de ação e reflexão.

Estudantes se empenham na preparação do Caldo da Amizade

 

Durante as suas aulas e eventos, ele observou um comportamento diferente em alguns alunos do Ensino Médio, que chamaram a sua atenção. “A interação deles era pouca, o rendimento era baixo, eles não se envolviam nos projetos desenvolvidos pela escola”, contou. Com o projeto, Ricardo Coelho obteve o título de mestre pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). O entrevistado afirma que, como professor, precisaria de uma base teórica para justificar o que ele estava propondo a fazer. “Quando surgiu a possibilidade de fazer o mestrado, eu coloquei toda essa situação para o professor, e lá meu pré-projeto foi aprovado”, lembra o filosofo.

Solidariedade e dificuldades

De acordo com ele, a princípio o projeto Caldo da Amizade foi direcionado a  moradores de rua, pessoas que pernoitavam nas calçadas frias da cidade, desprotegidas e sem abrigo e alimento. “Servíamos caldo e sopão, hoje revezamos entre caldo e cachorro-quente”, diz o professor. As ações do projeto também passaram a se concentrar na portaria do Hospital Regional de Imperatriz (HRMI), contemplando os acompanhantes de pacientes internados na unidade. Depois, tiveram como público-alvo os garis da cidade.

Professor Ricardo Coelho, à direita na foto, acompanha as ações

 

Ricardo Coelho ressalta que chegou a encontrar dificuldades por causa da escassez de objetos que ajudassem na identificação do grupo. Assim como o transporte para os membros se locomoverem até o local onde aconteceria a entrega do caldo. O professor enfatiza, porém, que  quando se ajuda  alguém, a vida faz mais sentido. “Não nascemos para viver sozinhos, isolados do mundo e dos outros”.

Ele se emociona ao recordar-se de um momento de medo e tristeza vivido pelo grupo.  “Nossa primeira ação com o segundo ano, estávamos exatamente na praça Brasil servindo nosso caldo. Parou um homem em uma caminhonete e jogou um saco cheio de água na gente”.

O professor lamenta, ainda, ter enfrentado resistência ao projeto na própria escola. “Algumas pessoas acham que não se deve discutir sobre o assunto dentro da instituição, porque é uma questão muito forte. Fomos superando e incorporando isso até ser criado o projeto”, comenta Ricardo.

Transformações

Ricardo Coelho trabalhou, principalmente, com o conceito filosófico do termo conatus. Trata-se de um fenômeno sociocultural, também chamado de esgotamento nervoso, como uma força que não depende de nada, mas de si mesma. “O colapso de Paul Ricoeur foi exatamente afirmar a vida. Mesmo ele não fazendo as coisas que ele gostava, mesmo ele sem a visão, mesmo sem a pessoa que ele amava, sem essas coisas, ele decidiu tomar a decisão de continuar vivo. Essa foi a base teórica do meu projeto”, detalha.

Observando a rotina diária dos alunos em sala de aula e ouvindo alguns relatos existenciais, o professor Ricardo Coelho percebeu que a automutilação era comum nas escolas de Imperatriz e do Maranhão. “Eles viram na filosofia um espaço para eles desabafarem, então eles me mostravam e falavam seus sentimentos de tristeza. Já havia tido até tentativa de suicídio mesmo”, enfatiza o filósofo.

Ato da entrega do alimento completa o ciclo

 

O hoje estudante de Enfermagem da UFMA, Karlos Adryan Viana de Sousa, participa do projeto Caldo da Amizade e destaca a perspectiva humanista e inclusiva de olhar com mais atenção para os indivíduos marginalizados. “Fora do Ensino Médio, estudando para vestibulares, me encontrava numa crise existencial que perdurou durante muitos meses de 2020. Quem é o Karlos Adryan sem os amigos? O que seria de seu futuro? O mundo agora se tornava maior, as responsabilidades eram outras e eu, sozinho, desbravava essa nova dimensão da vida adulta”, descreve Adryan sobre os seus sentimentos na época.

Adryan afirma que se sentia incompreendido por familiares e em meio a caminhos que só apontavam a uma direção, que poderia ser trágica. “Busquei o meu velho parceiro e professor Ricardo, espantado, triste e com medo do que parecia me sufocar quando acordava e tornava a me assombrar na hora de dormir”.

Hoje bastante envolvido no projeto, Karlos Adryan se declara muito agradecido ao trabalho de Ricardo Coelho. “Qual a extensão do que é ser professor? Me perguntava, naquele momento e percebi que transpassa as limitações da sala de aula. Ser professor é aquele que ensina, que aprende, que ouve, que aponta o caminho, que se reinventa, e graças a Deus um desses anjos estava em minha vida!”

A estudante Maria Gabriela, outra das participantes, menciona que o principal objetivo do projeto não é apenas de assistencialismo. Há todo um sentido de fazer com que as pessoas interajam com as classes mais excluídas da sociedade, mostrando que todos são iguais. “Hoje eu posso afirmar que o Caldo da Amizade despertou em mim o sentimento mais bonito que eu poderia ter: a vontade de ajudar o próximo”, destaca.