Texto: Yanna Duarte
Foto: divulgação
Quem já foi criança um dia, reconhece a importância dos trenzinhos da alegria que passeavam nas ruas tocando Xuxa, Balão Mágico e outros artistas infantis. Das duas uma: ou você adorava, ou ficava horrorizado e começava a chorar quando sua mãe subia com você em um daqueles. Esta é uma experiência de amor.
Era sexta-feira à noite, por volta das 22h30, quando o ônibus balada, que estava estacionado ao lado de uma antiga sorveteria, se preparava pra partir. Seria a primeira noite de suas atividades. Antes de chegar ao local, dava para perceber de longe aquela figura comprida e brilhosa, e ouvir uma letra de funk em altos decibéis que vinha do aparelho de som.
Era um ônibus biarticulado, ou seja, com partes agregadas, de mais ou menos 30 metros de comprimento, com capacidade para 300 pessoas. Por fora, é coberto de luzes neon, com cores como vermelho e amarelo, menos chamativo impossível. O dono, uma criança que cresceu, mas que não deixou para trás o encantamento que o passeio nos trenzinhos lhe proporcionava. “O que me levou a esse lindo projeto foi por ter andado na infância nesses trenzinhos”, define Gilson Santos, 35 anos.
Antes de entrar, uma onda de incerteza pairava no ar. “Será que vale a pena embarcar nisso?” Ninguém tinha chegado ainda, por isso o ônibus brilhoso estava vazio. Seria naquela hora ou nunca. Dentro do local, havia inúmeros jogos de luz pendurados no teto que iluminavam o recinto naquela noite quente, um segurança, o caixa e dois isopores de bebidas no chão – com água, refrigerante, ice e cerveja. Antes disso, o futuro tripulante Caio Cesar se perdia do local de partida, pois pensava que o ônibus sairia da Praça Brasil, e não da Praça da Bíblia. Ele chegaria minutos depois no Super Bondinho da Alegria.
Passageiros
A ideia do ônibus veio do amor aos trenzinhos e a vontade de trazer algo diferente para a cidade, que foi onde Gilson nasceu e se criou. O dono o comprou em São Paulo. Antes, um transporte comum que levava paulistas a seus deveres do dia-a-dia, hoje, um veículo adaptado para festas em Imperatriz. Rodou por cidades como Marabá (PA), Coelho Neto e Santa Quitéria no Maranhão, mas foi em lugares como Chapadinha (MA) que obteve maior sucesso e destaque na mídia, com uma média de 210 passageiros por viagem. Segundo Gilson, o Super Bondinho transportou mais de três mil pessoas quando estava por lá. “As pessoas me tratavam como um astro, que veio para proporcionar alegria aos seus dias.”
A essa altura, Caio Cesar e seu amigo Vinícius, futuros passageiros do bondinho, estavam à espera de algumas amigas já no local que o transporte sairia. Eram 23 horas e nada dessas meninas chegarem. Eles decidiram entrar e esperar por elas lá dentro. Caio, se sentindo um pouco mal por conta de ter bebido a tarde inteira, se sentou. Foi aí que o bondinho iniciou seu trajeto pelas ruas da cidade. Quando começou a andar, alguns espectadores olhavam impressionados para aquela coisa gigantesca e chamativa, mais parecida com um ônibus com vagões, e outros gritavam “Irruuu” e se levantavam para ver melhor. O funk que tocava agora também era desconhecido. Próxima parada: Praça de Fátima.
O Super Bondinho da Alegria iria percorrer o centro da cidade e à medida que parasse, pegaria pessoas que também tivessem interesse. O valor: 15 reais a entrada para quem não bebe e 25 com o open bar liberado. Na Praça de Fátima, subiu um grupo de amigos, que logo começaram a beber e rebolar ao som da música. O ambiente era perfeito para fazer amizades e se divertir com os colegas, tocando em maioria funks que estão na moda. Após duas paradas, o grupo que daria vida às músicas do ônibus chegou – as amigas que Caio e Vinícius esperavam. Eram umas sete meninas e, quando elas entraram, foram logo gritando “aaaaaaa” e abraçando os dois garotos, momento em que a aventura se iniciaria.
Balada em movimento
Letícia e Jaiane começaram a se entender com o funk que tocava no momento. Era a voz do MC Don Juan, que falava sobre um relacionamento que não se sustentava mais e que, agora, o eu lírico não queria nem de graça. “Não dá mais, era uma briga em cima da outra”, dizia uma parte da música. E todos no local cantavam e dançavam, como se também partilhassem daquele sentimento.Em meio a tantas músicas, algumas obtinham mais burburinho em relação à outras. Era o caso de Catharina, que gritava sempre que não gostava de uma. “Troca de múuuuusica”, ela protestava. Quando o ônibus passou por alguns locais famosos na cidade, como Gatinhos, Rufinos e barzinhos seguidos, uma das meninas gritou para outra: “Diz que aqui tem open bar”.
E então começaram a dançar perto das portas e janelas para quem estava do lado de fora. Um rapaz muito animado e sem entender o que era aquilo tudo, achou a visão interessante e quis subir no ônibus, mas, como precisava pagar, o segurança o barrou. A plateia – pessoas que bebiam sua cerveja ou que saíram pra descontrair numa sexta à noite – olhava impressionada para o ônibus e seu público, filmando e tirando fotos dos estranhos acontecimentos que se passavam por ali.
O bondinho foi enchendo e pessoas desconhecidas estavam por todos os lugares, dançando e bebendo. Então, um rapaz tropeçou no pé de Vinícius e para se desculpar disse: “tô chapado demais siô, foi mal, ó”. E saiu pra pegar outra bebida. Depois de tanto funk, a ”sofrência” bateu em cheio nos corações dos excêntricos passageiros do ônibus balada. Versos da música “largado às traças” ecoaram pelo bondinho, com o coro cantando “vou beijando esse copo, abraçando as garrafas, solidão é companheira nesse risca faca”.
Conversa erudita
Enquanto os jovens dançavam e sofriam, ou rebolavam e sorriam, uma conversa sobre literatura e cinema foi travada. O assunto, que começou com elogios ao filme Laranja Mecânica do cineasta Stanley Kubrick, resultou num debate sobre diferentes livros. O amigo de Caio, Vinícius, dizia que o filme é bom, mas meio decepcionante no final pra quem leu o livro. O rapaz ainda falou que nunca acreditou verdadeiramente que Alex (personagem principal de Laranja Mecânica) tenha se arrependido de seus atos, e sim, que o tratamento psicológico o mudou de forma tão violenta que aquilo apenas ficou adormecido.
Enquanto essa conversa seguia, as outras pessoas continuavam a beber e dançar. “Já leu Kafka?”, Vinícius perguntou. Alguém se vira e diz que não. “Cara, até já tentei ler A Metamorfose, mas nunca consegui terminar”. Foi aí que a menina de cabelo rosa completou: “Ouvi falar sobre Kafka quando lia um dos melhores livros que já li até hoje, A Insustentável Leveza do Ser, do escritor tcheco Milan Kundera. Um dos meus favoritos”. Vinícius, então, visivelmente animado com a conversa, a olha e diz: “Mano, meu livro preferido é Olhai os Lírios do Campo, do Érico Veríssimo. Eu tava passando por um momento bem difícil na minha vida quando li esse livro”. Enquanto subiam o viaduto, algumas pessoas caíram e começaram a gargalhar, e então a conversa se dispersou e os amantes de livros se voltaram para outra turma que estava no bondinho.
A essa altura, já eram duas e meia da manhã e o ônibus balada levava mais de 30 pessoas, algumas paradas por não conhecer a música. Outras rodando a cabeça e fazendo movimentos com a mão quando uma eletrônica conhecida começara a tocar. Já estava perto do fim das atividades do bondinho e ele se encaminhava para o destino final, onde deixaria os seus tripulantes. Nesse momento, Caio dizia que “são as pessoas que fazem o rolê”, e que tinha achado a ideia do ônibus muito legal, por isso. Alguém foi no isopor e pegou uma coca-cola. A aventura estaria acabando. Perto do local que todos desembarcariam, o motorista perguntou ao grupo de Caio onde ele poderia deixá-los, e os amigos responderam: “pro karaokê, pro karaokê”.
Duas pessoas dançaram os últimos minutos de funk como se não existisse o amanhã, e, quando a porta do ônibus se abriu, eles seguiram para o karaokê junto com o famoso grupo de amigos que viveu tão intensamente as músicas do ônibus. O Super Bondinho seguiu viagem, mas a aventura não acabaria ali.