Relações de intimidade: entidades da umbanda e seus seguidores

Giras são formas de conectar-se com uma entidade

Texto e foto: Rennan Oliveira

Descendo uma rua de terra e cheia de erosões no bairro Ayrton Sena, totalmente sem identificação de como seria o nome daquele lugar, escuta-se o batuque forte e vozes em tom alto cantando uma música que parecia ser antiga e xamânica. Chegando ao local em que acontece o encontro de giras e rituais da umbanda, conhecido como Terreiro da dona Carminha, percebe-se um espaço humilde, uma casa que se assemelha às interioranas, cercada com ripas de pau, árvores e bananeiras dentro do terreiro. Olhares de praticantes e simpatizantes observam quem chega com um ar desconfiado por não conhecerem quem agora está adentrando.

Avista-se no interior do terreiro um altar feito de cimento com três cruzes: uma maior, no meio, e duas menores, ao lado esquerdo e direito, com um copo equilibrado em suas pontas, prática que significa oferenda às almas e aos orixás. Num salão em formato redondo, feito de tijolos pintados à cal, com um pilar enorme e redondo de cimento ao centro, revestido de cano PVC branco, pessoas dançavam em movimentos giratórios aquela música xamânica. Os bancos de cimento ao redor do lugar aconchegavam aqueles que não praticam a religião, mas sabem dos cânticos, acompanhando os tocadores que ficavam em um canto do salão reservado para os atabaques.

Os que giravam em torno do pilar principal vestiam roupas que pareciam ser pesadas, predominantemente de cor branca, com detalhes e adereços peculiares. Alguns com um turbante feito de crochê, outros com colares enormes de búzios, e outros ainda, com roupas de cetim, lembrando o povo rom (ciganos).

Caboclos

Um rapaz chamado Genisvaldo estava guiando a gira naquele dia. As giras são formas de se conectar com uma entidade, um convite. Naquela tarde de domingo eram homenageados os famosos caboclos da umbanda. Uma seguidora chamada Amanda, que se converteu há poucos meses, declarou que naquele dia essas entidades eram convidadas a irradiar na gira. “Hoje na gira, os santos que estão irradiando são os caboclos. Dá pra perceber por causa dos pontos (cantigas para um orixá).”

Em certo momento, Genisvaldo, o guia, não aparentava estar bem, suando, tremia muito. Um homem que estava ao lado dele, alto e trajando roupas de cetim, segurou-o firme na cabeça. Amanda explicou que ele estava irradiando. Quando Genisvaldo parou de tremer, mudou totalmente sua postura, andar e feição. Era “o Ventania” quem ele havia recebido. Genisvaldo andava empostado, de uma forma autoritária, falando alto, um som confuso, uma espécie de grito. De início não se saberia qual era a entidade, mas Amanda conheceu quem era pelo ponto cantado: “Ventania é um caboclo dentro da umbanda”.

Genisvaldo andava rodeando o salão muito lentamente e, a certo momento, ajoelhou em frente a um congá, um altar contendo vários santos, que se encontrava no fundo do salão, batendo a palma da mão muito forte no chão. Parecia uma forma de benção pedida às figuras dos santos ali presentes naquela mesa, predominantemente da cultura católica. Depois de um tempo irradiado voltou a ficar consciente. Para ele, estar irradiado é como ficar pesado.

O umbandista reflete, dizendo que no inicio é dolorido, porém logo após tudo melhora. “É um peso no inicio, até o santo tomar de conta da coroa da gente, que no caso é a cabeça. Depois a gente apaga, ficando inconsciente.” Para chegar neste estado, conforme explica Genisvaldo, é preciso de uma evolução espiritual bem avançada. “Têm pessoas que só tremem, outras apagam. As que apagam têm uma evolução bem grande dentro da umbanda.”

Energia pura

Fora do salão, alguns seguidores descansavam por alguns minutos. Um rapaz chamado Gabriel Araújo da Silva, conhecido como Gabriel de Oxóssi, estava passando para ver a gira. Ele é praticante há 16 anos, mas naquele dia não podia ficar por conta de seu serviço. “Eu me sinto tão bem com as minhas entidades, é uma energia tão pura, que não sei explicar. Eu me sinto tão leve e pleno que, pra mim, eu estou flutuando”. Gabriel declara que a sua espiritualidade veio como um dom passado por algumas gerações. “Já veio desde minha avó. Quando conheci, propagou-se como um dom. Depois tive que estudar e ainda hoje estudo, é um conhecimento que se leva para sempre.”

A umbanda é também espiritualista. Simone Sousa dançava ao redor do pilar. Por horas ela tremia, ficava em estado alterado, porém não irradiava. Quando estava exaltada girava de costas, com um olhar fixo. Em um intervalo para descanso, contou que há poucos meses está na umbanda. Simone participava de outra religião, veio da doutrina Vale do Amanhecer, uma filosofia espiritualista cristã que também trabalha com espíritos e entidades. Tem cinco anos de experiência na sua antiga doutrina e declara grande influência da filosofia kardecista. “A umbanda, pra mim, é a busca de um mundo equilibrado, expressão do viver. A umbanda também é espírita”, acredita. Era bem interessante ver a alegria da moça. Sorridente e muito de bem com a vida, a espiritualidade, para ela, é seu maior alicerce.

Simone comentou sobre a semelhança das duas doutrinas. No Vale do Amanhecer era encarregada de muitos trabalhos espirituais. “Lá também temos caboclos e pretos velhos e uma mesa kardecista que recebe espíritos não evoluídos, ou seja, obsessores”.

Na parte de fora, sentada em uma mesa perto de uma fogueira com um tambor e cozendo o couro, estava dona Carminha, proprietária do terreiro, uma senhora que vestia roupas amarelas e um chapéu de couro. O chapéu era uma alusão ao espírito irradiado nela naquele momento. Carminha conversava com duas mulheres jovens, falando sobre a vida. “Me chamo Francisco Légua Buji Buá Ferreira da Trindade”, declarou. A senhora, que aparentava ter 60 anos, com um rosto ainda jovem e um olhar fixo para cima de cabelos pretos, dizia sobre os mistérios da antiga religião, sempre se pronunciando como Francisco Légua. “Me sinto o mensageiro e, com a permissão de Deus, eu ando nesse mundo para fazer a bondade e a caridade.”

Francisco Légua não se incomodava em falar. Sempre muito educado, expressava o amor pela religião, dizendo não haver demônios ou qualquer figura satânica, como algumas pessoas de fora acreditam. “A religião da umbanda prega caridade e bondade e nem todos sabem o significado dessa palavra. As pessoas fora da umbanda veem como uma coisa do mal e não é. Todas as coisas feitas aqui são com a permissão de Deus.”

O terreiro de dona Carminha  funciona há muito tempo, reunindo muita gente. A maioria dos terreiros que atuam na cidade está nos bairros mais afastados, geralmente periféricos. É importante ressaltar que predominantemente são pessoas negras. Isso se dá pelo preconceito vivido por elas, já que precisam se distanciar do centro para viver sua religião sem serem demonizadas. O evento terminou por volta das 18h, quando já estava escurecendo e os seguidores, sentados, descansavam, alguns deles bebendo cerveja. Outros agradeciam por mais um dia de conexão com suas entidades. Suando, se sentiam leves e se benziam, agradecendo a Deus.