Linguagem de um amor sólido: projeto escolheu amar crianças da periferia

Consciência e diversão equilibradas: projeto Batuk

Texto e foto: Cassia Castro

Avenida Norte Sul, Vila Vitória, número 32. 19 horas de uma segunda-feira de lua cheia. Cerca de 50 crianças de 2 a 17 anos de idade estavam na porta da sede do projeto social Batuk. A fachada do local tem a parede pintada de cor rosa e grandes portões levemente desgastados de ferrugem por causa do tempo. O estabelecimento não tem placa de identificação, mas a grande Kombi amarela, estacionada na frente do lugar, ostenta a logomarca do projeto e é quase um outdoor.

O Projeto Social Batuk está completando sete anos de trabalho e é uma associação de direito privado, sem fins lucrativos. Atualmente presta assistência a mais de 100 crianças carentes do bairro Vila Vitória, que participam das atividades desenvolvidas no local.

As crianças pareciam felizes e eufóricas. Enquanto riam e brincavam, ao mesmo tempo demonstravam ansiedade para poder entrar. Quando Naldo Belone, líder e fundador do projeto, abriu o portão, as crianças tiraram as sandálias, limparam os pés em um pano preto que estava na porta e ingressaram no estabelecimento.

Naldo Belone organiza aulas de música, esportes como o jiu-jitsu, karatê, futebol masculino e feminino e ainda promove diálogos abertos sobre diversas temáticas como religião, saúde, prevenção contra as drogas, sexualidade, vida social, entre outras. “Estou aqui servindo a comunidade em amor e acredito que este é o meu chamado”.

O lugar é relativamente pequeno. O interior também é pintado de rosa e o chão coberto por tatames nas cores azul e amarelo. Perto da entrada há um enorme círculo de madeira com todas as medalhas conquistadas pelos alunos nas competições esportivas. Também há um bebedouro no canto direito e, do outro lado, várias caixas com doações de roupas e artigos esportivos. Enquanto as crianças entravam, Belone, com a ajuda de alguns meninos, organizava o som para dar início à programação.

Entre conversas e brincadeiras, meninos e meninas, impacientes, esperavam o tempo de a reunião começar. Uma menininha de aproximadamente dois anos de idade, com cabelos loiros e levemente ondulados, deitava e pulava no tatame. Alguns meninos colocavam em prática os truques das aulas jiu-jitsu e os adolescentes tentavam controlar a empolgação das crianças menores. Assim, iniciou o planejamento da noite.

Dificuldades

Interrompendo as conversas da criançada, o microfone soou alto no lugar. O líder do projeto começou reforçando sobre os objetivos de estar com todos reunidos ali e falou das dificuldades diárias de manter o ambiente.

– Orem por esse espaço, aqui é alugado e tenho que pagar todo mês. Compramos esse som e esse tatame com muito esforço – ressaltou Belone.

O projeto sobrevive de doações de voluntários e com o apoio da comunidade. Porém, todos os dias é uma luta de sobrevivência para continuar. Contas de luz e água, transporte, aluguel do estabelecimento, lanches para as crianças, materiais esportivos.

– Sobrevivemos praticamente de esmolas -, relata Belone.

Logo após o coordenador tratar dos objetivos, começa uma roda de diálogo aberto. Primeiramente, ele lamenta e explica sobre um caso recente que aconteceu com cinco crianças que faziam parte do projeto. Elas tiveram que ir embora de casa por conta de situações precárias de moradia. Foram levadas para a residência de seus tios enquanto sua mãe luta para construir um novo local. Belone fala para as crianças da necessidade de estudar para conseguir ter um bom futuro e tirar a família da favela.

Segundo a pesquisa Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2018, da Fundação Abrinq, no Brasil, 40,2% das crianças e dos adolescentes, de 0 a 19 anos, vivem na situação de extrema pobreza. Só o Nordeste possui mais de 8 milhões de crianças entre 0 e 14 anos vivendo nessas condições.

As crianças escutam atenciosamente cada palavra proferida. Uma conversa séria, mas conduzida com a leveza de uma linguagem informal. Entre uma frase ou outra, ora se ouve gargalhadas, ora o silêncio permanece. Outros assuntos também são comentados, como namoro precoce e comportamento estudantil.

– Vocês precisam acreditar. Repitam assim comigo! Eu sou aquilo que a Bíblia diz quem eu sou. Nós podemos!

– Eu sou aquilo que a Bíblia diz quem eu sou. Nós podemos! – As crianças gritam em uma só voz.

Belone continua a sua pequena palestra para concluir o pensamento:

– Aqui têm músicos, médicos, futuros policiais…

– Aqui têm músicos, médicos, futuros policiais…, – as crianças continuam repetindo a fala do coordenador.

– Têm padeiros, professores e outros profissionais…

Uma criança não concorda e fala:

– Padeiro não!

Todos riem.

Integração e reggae

A conversa durou mais ou menos 15 minutos. Ao final, foi iniciado o segundo momento da noite. Ana Clara, uma menina de 14 anos de idade, foi convocada para cantar e tocar violão. Ela tem cabelos pretos e cacheados e estava com eles amarrados. Usava óculos e um vestido branco com listras pretas irregulares misturadas em uma estampa floral de tons marrom e vinho. Fechou os olhos e começou a cantar. Balançava o corpo de um lado para o outro e o tecido leve acompanhava os seus movimentos.

Em uma só voz, todas as crianças logo acompanharam a música que foi escolhida. Assim como se sente uma brisa suave, Ana sentia na alma cada toque da música e por meio da voz demonstrava paz e amor. Logo após, alguns meninos foram ajudar. Formaram uma banda completa. Mateus no cajon, Sollano no violão, Belone no tambor, Ana Clara no vocal e, para completar, um coro de 50 meninos e meninas. Depois de cinco músicas, foi orado o Pai Nosso para finalizar o momento.

Gabriela, mais conhecida como Gabi, tem 8 anos de idade e acompanhou todas as músicas tocadas. Ela gosta dos momentos de louvores e suas músicas favoritas são evangélicas. “Gosto de dançar as músicas de Deus”. Acrescenta também que aprecia  brincar com os seus amigos e jogar futebol.

O momento mais aguardado da noite finalmente chegou. As crianças e adolescentes levantam animados e começam a vibrar:

Reggae! Reggae! Reggae!

Sollano, um garoto negro de 18 anos, coloca um reggae, aumenta o volume da caixa de som e pega o microfone. Enquanto isso, cada um procura o seu par de dança. Meninas com meninas e meninos com meninos. Todos entusiasmados e prontos para começar a se divertir. Quando a primeira música é tocada, os corpos dançantes ocupam todo o espaço do tatame. Ao longo da música, Sollano, todo animado, faz oferecimentos para quem participava do momento:

– Essa música vai para esse cara que tá dançando aí viu?! Esse homem dança! Salve, salve!

– O que mais gostei hoje foi de dançar. Gosto de reggae! – conta Samuel, de 9 anos.

Depois de uma playlist especial, com os reggaes favoritos das crianças, a programação é finalizada.

Com mais um dia de projeto concluído, Belone cumpre sua missão e declara:

– Meu sonho não é mudar a Vila Vitória, é deixar apenas um legado. É fazer com que essas crianças sonhem em tempos tão difíceis em que as pessoas já não sonham mais. Quero fazer com que essa geração acredite em si mesma.

Após lancharem, as crianças saem animadas com um sorriso no rosto. Vão para as suas casas aguardando ansiosamente para o próximo encontro e com a certeza de esperança para um futuro melhor.