A Trópico e o manifesto da “Mãe Monstro”

Festa Trópico apostou na luta contra o preconceito

Texto: Kaio Henrique

Foto: Jefferson Carvalho

“.. e então teve início uma nova raça/ uma raça dentro de uma raça humana/ uma raça sem preconceitos, sem julgamentos, mas liberdade sem limites/ Mas no mesmo dia, enquanto a mãe eterna paria,/ outro nascimento muito mais aterrorizante aconteceu:/ o nascimento do Mal.” Lady Gaga, 2011.

“A festa é uma vez no semestre e acontecem essas coisas. Eu fico revoltado!” O garoto, com seu traje preto e de bandana vermelha sai decepcionado da roda de amigos que se formou no canto. São 00h50 e a Trópico acaba de ser barrada por órgãos públicos. O motivo principal é a falta dos documentos legais que comprovem a liberação do local para realização de eventos, somado às tentativas falhas do Corpo de Bombeiros de tentar abrir a saída de emergência.

Recuo no tempo. Quando a festa começa, horas antes, a garoa já passou e o clima ameno do local aberto deixa os primeiros a chegarem um pouco tímidos. Por volta das 22 horas, a pista de dança ainda se encontra tranquila. No palco, o principal centro de contraste são as luzes neon predominantemente brancas. Na frente da mesa do DJ, em formato de triangulo, encontrava-se o desenho de um rosto desfigurado com sangue. Ao fundo, o nome Trópico, em preto, e em paralelo, uma moto estilo midnight star, presente na capa do álbum Born This Way, de Lady Gaga, centro da temática da festa.

Pelo fato de os organizadores enfrentarem muitas dificuldades na idealização das antigas edições do evento, o projeto da Trópico havia sido abandonado. Entretanto, após analisarem e perceberem que o nicho principal que eles atingiam ficaria necessitado, por não terem um lugar de identificação cultural para se sentirem confortáveis, os organizadores decidiram retomar a atração. Para acompanhar a mudança, abordaram a temática inspirada pela cantora estadunidense Lady Gaga, que no segundo álbum,  inspirador da festa, adota a ideia do renascimento.

“Vamos renascer. E eu acho que um álbum recente, que fala muito sobre preconceito e sobre questão visual que a gente tentou trabalhar através da nossa imagem foi o Born this way da Lady Gaga. Fala sobre renascer de novo e a gente queria renascer de novo. Uma raça sem julgamento e sem preconceito”, define um dos idealizadores da festa, Fancisco Cambraia, de 26 anos.

Cambraia e Lolita são os primeiros Dj’s a abrirem a festa. Com batidas pop, intercaladas por hits do universo LGBT’S, e funk, a noite começa a se descontrair. É ao som de Used to being alone de Azelia Banks, que é possível perceber a energia e a vibração das pessoas. Algumas pulam enquanto arriscam seus primeiros passos de Vogue, dança caracterizada por poses modeladas e carões.

Diversão e diversidade

Quando o local já se encontra cheio, ocorre paralelamente a primeira mudança de Dj’s. Sobe no palco Enme, a primeira drag a tocar. Seu look é o que chama a atenção: o preto predomina e, em contraste com seus colares dourados e a sua maquiagem carregada de brilho, se forma uma junção de cores digna de uma diva. Trazendo empoderamento negro para a festa, com influencia direta do estilo “Batekoo”. De origens periféricas, nascido no estado da Bahia, o movimento se caracteriza por ser livre de preconceitos e é embalado por batidas do hip-hop, rap, funk carioca, twerk, kuduro, e suas vertentes.  Tudo para conquistar o público de uma forma singular, fazendo todos descerem até o chão.

É com a frase inicial, “What Happened at New Wil’lins?”, que todos param e começam a prestar atenção na música Formation, de Beyoncé. Ao terminar a introdução, todos entram em um só coro “Y’all haters corny with that Illuminati mess”, enquanto reproduzem a coreografia da musica em grupos e alguns se arriscam no seu Vogue. Formation marca uma era de empoderamento na carreira de Beyoncé. Ali foi possível sentir a atmosfera de expressão e libertação cultural, por meio da dança e dos cantos em gritos, que clamam por liberdade e igualdade.

A próxima drag a assumir a pista é Blueberry. Seu look é a mesma fantasia utilizada por Lady Gaga no clipe de Born This Way, que é carro-chefe do álbum. Blueberry inicia sua setlist colando um remix do álbum. E se posiciona em frente ao palco iniciando a sua performance artística. Duas pessoas correm diretamente para frente e começam a gritar e aplaudir junto com o grupo que já se encontrava ali. No meio do remix, começa Mary The Nigth, puxando em uma só voz um coro que contagia a todos.

Enquanto isso, duas amigas conversam, inconformadas. É possível ouvir uma delas afirmar: “Pau no c… daquele furão.” A garota alta e de óculos, com os cabelos crespos úmidos, está ao lado de sua amiga, que escuta o desabafo. As duas aparentam feições de inconformadas. Marcaram de vir com um amigo, que parou de responder as mensagens minutos antes da hora marcada.

Atrás delas, é possível notar pessoas tirando foto. É perceptível a agregação de diversificação dentro da festa. A galera “padrãozinho” e “fora do meio”, como são identificadas as pessoas que seguem um padrão estético de beleza, e que não carregam traços da cultura mais afeminada do meio LGBT, estava tirando fotos e dando o seu famoso “Close”, dialeto gay utilizado para definir algo espetacular, naquele momento. Já mais ao lado, em frente ao nome “Amém, Fashion”, que compunha a decoração da festa, as outras Dj’s, encontram-se tirando fotos com o público que queria posar ao lado das Divas. Caras e bocas para as fotos, enquanto a linguagem corporal exala atitude e carisma.

Decepção

Os minutos se passam e de repente as pessoas começam a ficar mais atentas e sérias. Outros não entendem o que está acontecendo e continuam se divertindo. O som vai diminuindo aos poucos e as luzes da festa são acesas.  Ao olhar em direção à porta, é possível ver as luzes de giroflex dos carros ali parados, que tomaram conta da entrada. Ali se encontram cinco órgãos públicos: Defesa Civil, Conselho Tutelar, Corpo de Bombeiros, Secretaria Municipal de Planejamento Urbano e Secretaria Municipal de Infraestrutura. Momento de tensão. Ao certo, ninguém ali sabia se havia algo errado, mas, por serem marginalizados, já previam que haveria represálias. Ao mesmo tempo, um grupo se concentra na frente do palco e grita pedindo que a música volte a tocar.

“A policia odeia os viados”, comenta a garota com expressão de revolta, com seu copo da festa na mão. “Não são nem duas horas ainda”, argumenta seu amigo, com feição indignada e sem crer que a festa foi interrompida. As pessoas começavam a perceber que algo de ruim está pra acontecer. O “mal” acaba de adentrar a Trópico e o caos se instala. Um menino magro, de óculos pretos e camisa listrada, constata e se pergunta, em um comentário: “As melhores festas, eles sempre acabam. Se acabar aqui nós vamos para onde?”

Nesse momento, as pessoas ali presentes começam a discutir o que consumiram na festa devido ao horário que chegaram. E quais foram seus possíveis prejuízos financeiros devido ao valor do ingresso e ao fato de não terem usufruído das bebidas da festa como gostariam. Próximo à entrada, é possível ver um bombeiro com uma câmera tirando fotos da saída de emergência.

Por mais que seja um momento delicado, ainda há alguém tentando se divertir e bater sua meta. O garoto levemente embriagado diz para o seu colega: “Eu tenho a meta de beijar 10, entendeu? Já estou no oitavo. Eu paguei meus R$ 45 e aproveitei os R$ 45”, afirma, enquanto seu amigo o segura e refuta: “A-mi-ga, mas eu cheguei meia- noite, e ainda é uma e um. Aí já é errado”.

“Destruíram o meu sonho”

Poucos minutos se passam e sobe ao palco Cambraia, um dos organizadores, para dar um pronunciamento a respeito de todo caos: “Gente, infelizmente a Defesa Civil barrou a festa. Porque alguns documentos necessários o proprietário do local não deixou com a gente e só pode resolver segunda-feira. Então, eu peço a compreensão de todos, para que saiam. Infelizmente acabou”.

Com a confirmação oficial de que a festa será encerrada, tem início novamente as conversações, o sentimento de frustração e o inconformismo. Alguns gritam, se perguntando: “Por que acabou?” Já do outro lado, um grupo se forma e canta em um coro: “Eu não vou embora”, enquanto dançam mesmo sem música, se recusando a aceitar que tudo aquilo está acontecendo. Outros, já se dirigem em direção à portaria para irem embora.

O organizador volta ao palco e pede de novo para que as pessoas se retirem o mais rápido possível. Nesse momento, um dos participantes, de forma agressiva, exige o seu dinheiro de volta, apontando e olhando em volta com a iniciativa de iniciar uma briga corporal. Mas todos ao seu redor o ignoram e continuam se organizando em direção à saída. Na portaria, inicia-se uma enorme fila, a fim de retirar os tickets individuais para possível acordo com aquelas pessoas que pagaram o valor mais alto na hora da festa. Enquanto alguns ainda gritam: “Se fosse uma festa hetero ninguém fechava”.

A Trópico se iniciou com um projeto de amigos, que, reunidos, decidiram realizar um evento fechado, já que não se sentiam representados pelas festas do gênero que existiam na cidade. A necessidade acabou se transformando e resolveram montar uma balada aberta para todos, com um valor especifico.  Foram inspirados pela cantora indie Lana Del Rey, que, ao lançar seu curta-metragem chamado Trópico, abrangeu a descoberta do pecado junto à liberdade. Os organizadores também foram influenciados pelo sentido real da palavra trópico, que “divide” o mundo ao meio, agrega essa divisão de dois mundos. Um lugar onde as pessoas podem ser livres e não são obrigados a seguir determinados padrões de comportamento.

Ao final do evento estavam presentes apenas os amigos que ajudaram na idealização. Cambraia, por um minuto, se encontra em uma conversa. Enquanto abraça seu colega, com um sentimento de desconsolo, afirma: “Destruíram o meu sonho”.