A luta acabou: esse era o nome da música que tocou no meu Spotify quando arrumei um dos meus primeiros empregos na minha área. Era uma época onde eu estava, mais do que nunca, precisando do dinheiro. O trabalho era uma benção.
O mundo capitalista te atribui a se valorizar conforme o seu trabalho, e eu tinha encontrado o que parecia ser um ótimo emprego: totalmente home office, em outro estado, compatível com meus horários e também pagando melhor que a média dos cargos na minha própria cidade!
E essa é uma área que movimenta muito dinheiro: uma pesquisa do Cenp aponta que, em 2023, no ano que eu trabalhei na área, o investimento publicitário na internet foi de quase R$ 9 bilhões. E pra melhorar tudo, minha chefe me disse quando eu entrei: você passou na seleção contra 500 e poucos candidatos. Me senti incrível.
Eu teria dinheiro. Eu teria um certo status.
Não seria bem assim. Seria uma bênção, mas também seria uma maldição. Eu só não tinha entendido isso ainda.
O jornalismo é um espaço delicado: todo mundo já entra no curso meio que trabalhando, e pra arrumar alguma coisa, não demora muito. Ênfase no “qualquer coisa”, porque se tem uma área precarizada, é essa.
O jornalismo é o relato do real. Todo mundo que entra no curso tem uma ideia de que vai lidar com a realidade em muitas formas, desde o mais mundano até o mais brutal. A gente sabe e até brinca com ter que lidar com politicagens, mortes, e coisas do tipo. Só que saber disso é uma coisa. Entender é outra história.
E nesse caso, eu não tinha entendido ainda.
Então, comecei meu serviço. Escrever para um portal de notícias. Meu cargo? Auxiliar de conteúdo, também chamado de redator. A função era simples: todos os dias, abrir o Trello, ver as pautas que os pauteiros estavam deixando para mim, e transformá-las em conteúdo.
A meta diária? 10 textos. Quando fiz o teste para a empresa, pareceu simples. Eu tinha seis horas, e na minha visão, isso era mais que o suficiente. Modéstia à parte, mas eu digito extremamente rápido, e em um trabalho que exigia pouquíssimo pensamento? Fácil. Terminei o teste com cerca de uma hora de antecedência: cerca de 30 minutos por texto. Lembre-se do tempo. É importante.
Tudo parecia ótimo. Comecei nos meus primeiros dias com as mesmas tarefas. Olhar o Trello, conferir a pauta, que geralmente era algo como “Vasco enfrenta Flamengo neste fim de semana” e produzir. Geralmente tinha um link associado, de outro site reportando a mesma coisa. Aí lá ia eu, no modo “copia, só não faz igualzinho”.
Sendo franco: era um site chulo. Não demorei pra perceber isso. 200 anúncios em toda página tornavam o texto literalmente ilegível, ao ponto que eu tinha certeza que não havia um único designer naquela empresa. Eu gostaria de reforçar: haviam tantos, mas tantos anúncios naquele site, que eles cobriam os textos. O que eu estava escrevendo não importava. Era só uma questão de ter conteúdo otimizado para o Google, para gerar cliques e mais renda com anúncios.
Não era um emprego que eu queria. Mas eu precisava do dinheiro, e o fato dos meus superiores não se importarem tanto com a qualidade não significava que eu não me importaria.
Então, comecei meu trabalho. Diariamente eu dava o meu melhor para produzir conteúdo que, no mínimo, não estivesse errado. Isso era diferente de acordo com cada pauta.
Nas pautas de futebol, eu podia acabar tendo um trabalhinho. Sempre odiei o esporte, o que significa que eu não entendia 100% do que estava sendo dito, e as informações nem sempre batiam entre uma fonte e outra. Meus supervisores me orientavam que não era tão necessário assim eu pesquisar em outros sites, mas como eu estava fortíssimo em produzir conteúdo de qualidade, eu sempre averiguava tudo. Mesmo com apenas 30 minutos para cada texto.
Eu gostava das pautas de signo. Eram simples, divertidas e eu tinha fé que ninguém ia se importar muito se alguma coisa ficasse inconsistente. É a natureza das diferentes interpretações de cada astrólogo, é claro. Rendeu diálogos legais com meus amigos, que esperavam ansiosamente eu mandar o horóscopo deles todos os dias. E ainda é uma história legal que eu conto para as pessoas até hoje: você sabia que eu já trabalhei escrevendo sobre signos?
Mas com o tempo, a realidade foi batendo. Pautas mais complexas iam surgindo, e me exigiam uma habilidade de apuração bem mais alta. Nem tudo era futebol e signos: às vezes, surgiam coisas horríveis, como os casos de escravidão no Sul, por exemplo. Uma das piores experiências que eu tive foi no dia 2 de fevereiro de 2023: dia da morte de Glória Maria.
A Glória Maria, que é claro, foi um dos grandes ícones e inspirações do jornalismo brasileiro. E lá estava eu, com apenas 30 minutos para produzir um texto de 300 palavras, relembrando os seus incríveis trabalhos, circunstâncias da morte, relações familiares, e tudo o mais.
Tudo enquanto meus superiores me pressionavam: o conteúdo tinha que sair o mais rápido possível, para competir com os outros sites. Escrevi com o extremo da velocidade, mas com um trabalho de averiguar tudo.
Faltando 5 minutos para meu deadline, eu terminei o texto. Copiei com CTRL + X (Recortar) o texto no Word. Antes de adicionar no WordPress, decidi copiar a imagem da publicação.
Quando eu copiei a imagem, percebi a desgraça que tinha acabado de fazer. Eu acidentalmente apaguei meu próprio texto, com apenas cinco minutos para entrega.
Sem possibilidade de backup, o que eu fiz? Escrevi tudo de novo. Em cinco minutos.
E olha, sinceramente? Eu fiz um bom trabalho. Tudo estava fresco na memória, eu ainda tinha os links, então menos pior. Minha matéria foi até citada por um grande veículo de comunicação aqui do Brasil. Fiquei me sentindo orgulhoso, mesmo por aquela experiência horrível.
Mas como já dizia a Física: energia não se cria nem se destrói, e se eu estava dedicando tanta energia do meu dia – 6 horas, das 7h às 13h – para o meu trabalho, quer dizer que em alguma outra área da minha vida eu precisaria estar devendo.
Mas isso não era possível. Eu não podia ir mal na faculdade. Eu saía do trabalho às 13h, almoçava e tomava banho, pegava minha bicicleta e em 30 minutos estava na UFMA. Chegava em casa e me dedicava aos trabalhos. Eu não podia deixar de dar atenção a nenhum detalhe da minha vida social, seja minha namorada ou meus amigos, eu tinha que estar presente. E é claro, eu preciso existir como ser humano. Eu estava dormindo pouco, pois sempre tinha que dedicar meu tempo pra alguma coisa.
Então, finalmente aconteceu a tragédia inevitável. Não acho que foi 100% uma consequência do meu trabalho, mas definitivamente estava próximo. Em um final de semana, exausto por não ter tempo de aproveitar minha vida, marquei um monte de coisa: saí com uns amigos para o cinema na sexta, fui para o bar logo depois. Mal dormi.
No sábado, joguei videogame o dia inteiro, sem espaço para sono. Pela noite, me chamaram para sair de novo. Fui beber. Preciso aproveitar a vida, eu pensei. E aí foi mais outra noite, praticamente sem dormir.
O resultado veio e não poderia ser outro: na manhã de domingo, eu tive uma convulsão na cozinha, enquanto fazia o almoço.
Acordei na sala do hospital, depois de ser socorrido pela minha mãe e por vizinhos. Fiquei com algumas sequelas até hoje. Mordi minha língua durante a convulsão, quebrei coisas, tive cortes, e bati a cabeça no chão. Pelos próximos dias, mesmo com os remédios, meu corpo inteiro doía, e eu mal conseguia andar direito.
Eu poderia até dizer que o pior foi o meu braço. Por dias, eu não conseguia mexer meu braço direito, porque enquanto caia no chão, eu bati meu braço no ferro do armário. Tinha uma marca roxa gigantesca e ele não se movia. Mas o que realmente foi horrível: o fato de que isso não foi o suficiente para me desprender do trabalho.
Eu tinha que continuar na rotina. Depois que acabaram meus dias de atestado, voltei a trabalhar. Eu apoiava meu braço na mesa usando o outro, já que não conseguia mexê-lo. E continuava a digitar 10 textos por dias, um a cada 30 minutos.
E para ir na faculdade? A bicicleta já não era mais possível. Peguei um ônibus. Não conseguia me segurar direito, porque só tinha vaga pra sentar no lado em que eu precisaria me apoiar no braço imóvel. Eu só consegui ir para o curso de forma relativamente “normal” porque comecei a pegar carona com a dona Rita, que mora aqui perto e faz faculdade comigo. Ela tem um lugar reservado nos agradecimentos do meu futuro TCC.
Mas é, eu estava me sentindo um lixo. Emocionalmente instável, e ainda tive outros problemas pessoais nesse meio tempo que não tinham nada a ver com trabalho ou faculdade. A sobrecarga, o desespero diante do futuro, tudo isso passava pela minha cabeça diariamente. Comecei a fazer terapia nessa época, o que ajudou bastante, mas não era a solução para todos os problemas.
Alguns dias depois que voltei, e ainda nessa rotina infernal, minha chefe me chamou para uma reunião. O nervosismo tomou conta: e se eu for demitido? E o medo parecia real, pois no começo da reunião, ela me deu um puxão de orelha.
“fulano, reparei que você só escreveu 10 textos hoje, ao invés dos 12 que costuma escrever.”
Sim, eu estava escrevendo 12 por dia a essa altura. Ela reclamou que eu estava fazendo apenas o mínimo que fui contratado pra fazer. Mas em seguida, veio outra revelação.
“fulano, vou compartilhar como os seus últimos textos estão se saindo. Vamos ver aqui…”
Ela puxou uma planilha e mostrou os resultados das minhas publicações. Um dos melhores foi uma publicação genérica sobre meteorologia. 900 mil visualizações. Ela me elogiou bastante, mas reforçou que eu deveria escrever os 2 textos a mais todo dia.
Eu saí da reunião, fiz as contas de quantos reais eles teriam lucrado com aquelas visualizações. Prefiro nem citar o quanto estavam lucrando em cima da minha desgraça. O meu salário não era nem 10% daquilo.
O jornalismo é o relato do real. Não só temos que trabalhar muito, mas lidamos com a realidade em todas as suas formas. Desde o mais mundano e banal, como signos e futebol, até o mal mundano com o qual nos acostumamos, como a exploração no trabalho. E até o extremo do extremo, com as histórias mais violentas possíveis. Vivenciei todos esses horrores no meu antigo emprego. Em um dos casos, em um nível pessoal.
Só que agora, ao contrário de antes, eu já entendia isso.
Informação é poder. Agora eu sabia o que precisava para tomar minhas decisões. E quando outra oportunidade surgiu, mesmo com um salário menor, pedi demissão do meu emprego. O dinheiro fez falta nos meses seguintes, isso é um fato. Mas eu dei meu jeito. Tudo valeu a pena pela diferença de viver e sobreviver, pelo menos psicologicamente. Não é como se eu tivesse deixado de viver no capitalismo.
Enquanto escrevia essa crônica, outra música apareceu no meu Spotify. A letra é mais ou menos assim: Eu já sei que a vida é dura…
Agora é pura questão de se acostumar.