“É, mas o pessoal não me conhece por Maria Silva. É dona Nenê.”
Por Ludymilla Souza

Escrevo sobre Dona Nenê com o olhar de quem a admira e a acompanha de perto. Moro onde tantos estudantes passam e vejo de dentro como ela transforma seus kitnets em abrigo, não só por oferecer um teto, mas por oferecer cuidado.
Tendo por nome Maria Silva, 83 anos, uma senhora dos cabelos brancos, pele clara, e o rosto de marcas suaves do tempo que revelam uma vida de trabalho, lutas e desafios. Sorriso discreto e a postura serena completam a imagem de uma mulher forte e elegante.
Natural de Santana do Cariri, no Ceará, ela nasceu em 1942 e, ainda bebê, foi deixada pelos pais sob os cuidados dos avós, enquanto eles se mudaram para Imperatriz. Somente aos 14 anos, em 1957, quando a rodovia Belém-Brasília estava sendo construída, ela foi buscada pelos pais junto com seus avós, iniciando então sua vida no Maranhão.
A família viveu primeiro em João Lisboa e, depois, mudou-se para São Sebastião, no atual estado do Tocantins. Foi lá que Dona Nenê se casou aos 17 anos, mas o casamento durou pouco. Dois anos depois, já com uma filha, ela se separou. Ao retornar para Imperatriz, buscou abrigo na casa dos pais, mas foi rejeitada: o pai não aceitava que uma mulher separada vivesse sob o mesmo teto.
Na época, como ela lembra, as mulheres que se separavam dos maridos “não eram valorizadas”. Foi expulsa de casa pelo pai, com 22 anos e uma filha pequena nos braços.
“Aí eu fiquei chorando na Praça da Cultura com a filha no braço, chorando sem ter pra onde ir”, relembra.
A Praça da Cultura, que na época era oficialmente chamada de Praça Prefeito Renato Cortez Moreira e, durante o período militar, recebeu o nome de Praça Castelo Branco, já era um ponto movimentado da cidade. Localizada na Rua Coronel Manoel Bandeira, o nome “Praça da Cultura” acabou se enraizando entre os moradores porque ali funcionava o antigo “Passo da Cultura”, onde hoje está a Academia Imperatrizense de Letras.
Foi nesse espaço público, tão simbólico para Imperatriz, que Dona Nenê, desamparada e com a filha nos braços, conheceu um rapaz que se aproximou para perguntar por que ela chorava. Ela relatou sua situação e ele se ofereceu para ajudar, prometendo alugar um quarto para ela. Sem conhecer bem a cidade e acreditando na boa intenção dele, Dona Nenê aceitou. O homem alugou um cômodo para ela na antiga Farra Velha, hoje Rua Antônio de Miranda, no Centro de Imperatriz. Ali ela iniciou mais um capítulo de sua história, ainda marcada por desafios, mas também por força e resistência.
Onde dona Nenê fincou raízes

Quando Dona Nenê chegou a Imperatriz, o Centro era completamente diferente. “Não tinha água, não tinha energia, não tinha asfalto. A delegacia era de tábua, a cidade era do arroz”, lembra. Mesmo com as dificuldades, havia fartura, vizinhança unida e muita vida. Com o tempo, testemunhou mudanças profundas, boas e ruins. Entre as piores, recorda o assassinato do prefeito Renato Moreira, episódio marcante na história local. Entre as boas, vê o crescimento do comércio e a chegada de lojas importantes, como o Armazém Paraíba, Mateus, que ajudaram a desenvolver o Centro.
Ela já teve de tudo por ali. Começou com uma boate, na rua Sousa Lima, enquanto mantinha também uma casa alugada, na rua Antônio de Miranda, onde vivia com a menina. Com o tempo, a boate deu lugar a um ambiente mais familiar. “Eu vi que não dava mais pra continuar daquele jeito. Aí mudei, comecei a trabalhar com comida, depois fui fazendo outras coisas”, conta.
Já nos anos 70, em meio a tantas idas e vindas, também veio o conselho de um juiz que acompanhava sua história e sugeriu que buscasse um trabalho mais estável, pensando nos filhos. Foi o incentivo que faltava para seguir em frente e investir em algo novo. Foram 15 anos nesse ramo, até decidir mudar completamente de vida. Convertida à Igreja Batista, abandonou o trabalho com bebidas e reorganizou seu futuro. Abriu primeiro um restaurante, depois um pequeno lanche, e passou também a alugar os antigos quartos, que antes atendiam boêmios, para famílias e trabalhadores que precisavam de moradia fixa. Muitos permaneceram ali por anos.
Trabalhando no Centro, viveu de perto o crescimento da região. Morou e empreendeu sempre nas proximidades da Delegacia, onde, segundo ela, se sentia protegida. Lembra de episódios marcantes, como a prisão de um grupo de terroristas que vieram do Tocantins, quando equipes da Aeronáutica ficaram hospedadas em sua casa. “Eles me ajudaram muito, eu tinha crianças pequenas. Foi uma época de medo, mas eu estava protegida. Ficaram tudo lá comigo. Eu ajeitei pra eles dormirem, comerem, tudo direitinho”, conta com orgulho.
A mudança transformou sua trajetória. Mãe de 10 filhos, dos quais quatro faleceram, criou também 12 netos, 20 bisnetos e quatro tataranetos. Ela se orgulha principalmente do fato de, mesmo sem ter estudado, ter colocado todos os filhos na escola. “Eu nunca tive o privilégio de estudar, mas meus filhos aprenderam e são todos empregados, graças a Deus”, conta. Aos 60 anos, ela mesma aprendeu a ler.
Hoje, mais de meio século depois, Dona Nenê segue vivendo ao lado da delegacia, na rua Sousa Lima. Sua neta é quem administra o restaurante e a lanchonete, enquanto ela permanece responsável pelos kitnets que acolhem estudantes vindos de outras cidades. Faz questão de escolher bem quem recebe em casa e sempre prioriza o público estudantil, repetindo o cuidado que marcou toda a sua vida.
É nesse mesmo lugar, entre histórias antigas, o movimento do Centro e o vai-e-vem de quem chega para recomeçar, que Dona Nenê permanece como um ponto de referência. Para mim, que também encontrei acolhimento em sua porta aberta, ouvir o que ela viveu é entender que sua presença atravessa gerações. Mais do que testemunha das transformações da cidade, ela se tornou parte do que mantém o Centro vivo: um laço de permanência, cuidado e memória que resiste, mesmo quando tudo ao redor parece mudar depressa demais.