Mineira de coração maranhense, dona de salão durante o dia e professora voluntária à noite, Débora ensina idosos a ler e escrever no projeto: “Sim, eu posso!”

Por: Luana Rodrigues
No bairro Nova Imperatriz, na rua Ceará, há um salão de beleza onde risadas e conversas cruzam o som do secador. É lá que Débora Godinho Lanes Carvalho, 46 anos, mineira de Governador Valadares, passa boa parte dos seus dias. Mas quando o sol se põe, a rotina muda. As tesouras e escovas dão lugar a cadernos, vídeos e lápis. À noite, Débora se torna professora voluntária do projeto “Sim, Eu Posso!”, voltado à alfabetização de idosos e adultos, função que ela desempenha desde março deste ano.
Débora chegou à Imperatriz acompanhando a família, que migrou após o avô comprar terras no Pará. “As mulheres vieram para Imperatriz estudar, e a gente acabou ficando. Nunca mais voltamos pra Minas”, lembra. Há 22 anos, ela se estabeleceu no bairro Nova Imperatriz, na região oeste da cidade. A área começou a ganhar forma a partir da década de 1970, quando Imperatriz se expandia rapidamente impulsionada pela abertura da Belém–Brasília e pela chegada de famílias atraídas por trabalho, estudo e novas oportunidades. Com o tempo, o bairro se consolidou como uma região de forte presença comunitária, marcada por ruas residenciais, pequenos comércios, oficinas e serviços de bairro. Foi nesse espaço movimentado e, ao mesmo tempo, enraizado em histórias de migração e crescimento que Débora construiu sua rotina e fincou suas raízes.
Formada em Economia, Débora trabalhou por sete anos como gerente de banco, até decidir deixar o cargo para assumir o salão de beleza da mãe. Mas, mesmo entre tinturas e tesouras, a verdadeira paixão sempre foi ensinar. Especialista em Docência pela Faculdade Pitágoras, ela conta que a vontade de lecionar nunca deixou de acompanhá-la. “Eu fiz Docência porque sempre tive essa paixão de lecionar”, explica. Quando amigas pedagogas comentaram sobre o projeto “Sim, Eu Posso!”, ela enxergou a oportunidade de unir propósito e vocação. “Fui conhecer o projeto, entender o método e me engajei nessa corrente de solidariedade para ensinar idosos e jovens que não sabem ler nem escrever.”
O projeto “Sim, Eu Posso!”
Criado em Cuba na década de 1980, o “Sim, Eu Posso!” é um método de alfabetização alfanumérico que associa letras a números, facilitando a aprendizagem de adultos e idosos que já lidam com contas e somas no dia a dia. No Brasil, o método passou a ser aplicado por meio de parcerias entre movimentos sociais e gestões locais. No Maranhão, o programa é coordenado pelo Governo do Estado, por meio da Secretaria de Educação (Seduc) e da Secretaria de Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop), contando ainda com o trabalho de educadores voluntários.
Em Imperatriz, o projeto funciona em diferentes polos distribuídos pela cidade. Débora integra um deles, realizando suas aulas em um espaço cedido pela Igreja Presbiteriana Renovar. As turmas funcionam de segunda a quinta-feira, das 19h às 21h, e o trabalho pedagógico é construído de forma coletiva. “Toda sexta-feira a gente se reúne pra planejar a semana com os outros educadores. São dez no meu polo, e a troca é muito rica”, conta Débora.
Entre um corte de cabelo e uma reunião pedagógica, Débora organiza a rotina com disciplina: duas horas pela manhã para planejar aulas e revisitar materiais, e as noites dedicadas aos alunos. “Conciliar o salão e a sala de aula não é fácil, mas quando você ama o que faz, o tempo se ajeita.”
Mais do que ensinar o alfabeto, o desafio é manter a chama da motivação acesa nos alunos. “O maior desafio é o idoso achar que já aprendeu tudo, que não precisa mais. Então o nosso trabalho é mostrar que nunca é tarde pra aprender.” Por isso, as aulas começam sempre com dinâmicas, momentos de mística e recreação. “A gente precisa que eles sintam vontade de continuar, de não desistir.”
O cotidiano que ensina
E é nas histórias dos alunos que Débora encontra a razão de continuar. Ela relembra uma das primeiras aulas, quando um senhor de 78 anos disse que queria aprender a escrever para mandar uma carta à namorada. “A esposa dele estava do lado e disse: ‘Pois é, professora, quero aprender a ler pra saber o que ele escreveu, porque a namorada sou eu!’”, ri.
Outra história que marcou profundamente a cabeleireira foi a de uma aluna de 81 anos queria aprender a ler para poder entender as bulas dos remédios. “Ela dizia que se soubesse ler, não precisaria depender dos outros. Isso toca a gente de um jeito… porque pra nós ler é algo comum, mas pra eles é como ganhar na loteria”, diz Débora, emocionada. “É como se, quando eles aprendessem, finalmente existissem para o mundo.”
As turmas pequenas, com cerca de 20 alunos, permitem um acompanhamento próximo, quase familiar. E o impacto do projeto vai além da alfabetização. “Não é só o beabá. A gente trabalha com vivências, com rodas culturais sobre meio ambiente, alimentação saudável, reciclagem. Eles aprendem a plantar mudas, reaproveitar alimentos, fazer doces com casca de laranja. É um aprendizado pra vida”, explica.
Débora acredita que o “Sim, Eu Posso!” transforma a comunidade. “Você imagina um tanto de pessoas nessa idade aprendendo a ler e escrever. Elas ganham voz, autoestima e autonomia. Se tornam indivíduos completos.” E a transformação não acontece só nos alunos. “Essa experiência me ensinou que somos uma gota no oceano. Às vezes a gente acha que tem tudo, mas quando vê a vontade de uma senhora de 81 anos de querer aprender, entende o que é força de verdade.”
Entre um corte e uma aula, Débora cultiva o mesmo ideal que move os projetos da Igreja Presbiteriana Renovar: servir ao próximo. “Deus me deu o privilégio de estudar e me formar. O que eu tenho pra dar é o conhecimento, e isso não acaba, é pra vida toda.”
Na Nova Imperatriz, o trabalho dedicado de Débora se mistura à rotina do bairro, marcado por fé, solidariedade e resistência, valores que também se refletem nas histórias dos alunos que ela acompanha. Entre eles está dona Esperança, de 81 anos, que virou símbolo de força para a turma. “Eu brinco com ela: dona Esperança, se eu chegar aos 70 com sua disposição, já vou ser feliz demais.”
A presença do projeto na região, mesmo funcionando a poucas quadras do bairro, amplia o acesso à educação para moradores que carregam lacunas deixadas pela falta de oportunidades de estudo na infância. Muitos chegam às aulas motivados a ler com mais autonomia, assinar o próprio nome, entender documentos ou simplesmente realizar um sonho adiado por décadas. Para a Nova Imperatriz, essa iniciativa funciona como um ponto de fortalecimento comunitário: aproxima vizinhos, cria redes de apoio e devolve a sensação de pertencimento e capacidade.
Entre cabelos e cadernos, Débora segue mostrando que ensinar também é uma forma de embelezar o mundo, e de transformar, aos poucos, o lugar onde vive.