Por: Rita Maria Sousa
Era uma quinta-feira, 23 de outubro de 2025. Não esqueço aquele dia. A Avenida Industrial, onde mora Amadeu Dias, estava em seu ritmo costumeiro: carros, motos, bicicletas, pessoas indo para o trabalho e outras para a escola. O sol brilhava forte e acabara de surgir no horizonte quando cheguei à casa dele. Amadeu é um sujeito querido e respeitado no bairro Bom Sucesso, por ser o primeiro morador ainda vivo e, apesar da idade avançada, desfrutar de admirável vitalidade.
Quem me recebe são duas de suas filhas, Rita Maria Dias Xavier e Valteires da Silva Dias. Ambas demonstram uma mistura de alegria e ansiedade diante do meu interesse em registrar a história do pai. Elas me conduzem até a sala e pedem que eu me sente em um sofá coberto por uma capa verde-limão, logo na entrada.
Rita Maria, a filha mais velha, vai buscar o senhor Amadeu Conceição Dias, 97 anos, casado há 73 anos com a mesma companheira, Deuselinda Dias, com quem teve oito filhos. À minha frente surge um homem franzino, de cabelos ralos e esbranquiçados, rosto marcado pelo tempo, mas dono de um sorriso fácil e contagiante. Ele se aproxima apoiado na filha e em sua inseparável bengala. Amadeu não enxerga mais com os olhos, mas, desde que perdeu a visão, aprendeu a “ver” com os sentidos. Pelo calor do aperto de mão e pela expressão serena, percebo sua alegria em me receber. Assim que começamos a entrevista, as duas filhas ligam os celulares e passam a filmar o momento.
Durante a conversa, descubro que Amadeu chegou ao Maranhão em 1931. A família fixou residência primeiro em São João dos Patos, onde viveu por sete anos. Em 1938, mudou-se para São Domingos do Zé Feio (MA), onde permaneceu por uma década. Ele veio do Ceará ainda criança, acompanhado dos pais, Cícero Francisco Dias e Maria José da Conceição.
Mesmo com a perda da visão, ele consegue se comunicar com o mundo, através de seu telefone fixo.
O morador mais antigo do Bom Sucesso recorda que a viagem a pé de São Domingos para Imperatriz durou 18 longos dias. Chegou à Imperatriz em 1956, morando inicialmente na esquina da Rua Coronel Manoel com a Avenida Dorgival Pinheiro de Sousa, hoje região central da cidade. Um ano depois, mudou-se para o Sítio do Meio, área que atualmente corresponde aos bairros Boca da Mata e São José. Foi ali que, em 1957, fez sua primeira roça.
“Tudo por aqui era mato. Tinha três engenhos: o do Zé Bandeira, o do Sebastião e o do genro dele, Antenor, que faziam rapadura. Os moradores eram poucos”, lembra, com nostalgia.
Permaneceu pouco tempo no Sítio do Meio. Buscando melhores terras, estabeleceu-se de vez na Avenida Industrial, no Bom Sucesso, onde vive até hoje. A mudança teve influência do pai, Cícero Francisco, que já trabalhava na região conhecida como Boca da Mata, próxima ao local onde Amadeu fixou sua moradia definitiva.
Ele afirma ter feito ali seis roças, plantando arroz, feijão, milho, macaxeira e banana. Parte da produção era para consumo da família; o excedente era vendido em uma feira no centro da cidade, próximo à atual rua Barão do Rio Branco. O nome da antiga feira, Amadeu, já não consegue lembrar.
O nascimento do bairro
O bairro Bom Sucesso surgiu com a expansão urbana de Imperatriz e faz parte da região popularmente conhecida como “Grande Santa Rita”, formada por vários bairros adjacentes. Como grande parte das periferias brasileiras, o desenvolvimento aconteceu de forma espontânea, enfrentando problemas de infraestrutura: ausência de escolas, postos de saúde, calçadas, pavimentação e dificuldades de locomoção, especialmente na área da feira, um importante polo econômico da localidade.
Passar pela rua do senhor Amadeu, hoje a movimentada Avenida Industrial, era tarefa difícil. Durante muitos anos, os moradores conviveram com lama no inverno e poeira no verão. Amadeu acompanhou cada etapa do crescimento da região.
Naquela época, conta ele, qualquer pessoa podia cercar uma porção de terra e tornava-se proprietária, bastando informar ao fiscal da prefeitura. Assim, Amadeu conseguiu construir o patrimônio que ainda hoje lhe garante sustento, complementado pela aposentadoria. O que antes eram veredas e plantações deu lugar ao asfalto e às casas.
“Cresceu demais. Aqui não tinha estrada. Era tudo carreirinha de roça”, recorda.
Ele cita ainda o progresso econômico trazido pelo líder comunitário Pedro Ambrósio, fundador da Feira do Bom Sucesso, hoje um dos principais pontos de comercialização da agricultura familiar da região.
“Foi chegando gente, foi chegando gente… Aí chegou seu Pedro Ambrósio no Bom Sucesso. Eu sempre falava com ele”, conta Amadeu. Ele lembra que, nos primeiros anos, a feira já atraía muita gente vendendo e comprando produtos. “Eu ainda fui lá na feira com meu menino, só uma vez, já cego”, completa.
A perda da visão
Amadeu perdeu a visão em 1981, após 17 anos lutando contra o glaucoma. Em Teresina (PI), submeteu-se a duas cirurgias, mas desde o início os médicos avisaram que a cegueira seria inevitável. Aos poucos, foi deixando de ver o mundo com os olhos e aprendendo a percebê-lo pelos sons.
Lavrador por muitos anos, sempre teve uma rotina de muito trabalho e atividade. Cego e impedido de exercer as funções de antes, sofreu até se adaptar. Mas encontrou um novo companheiro: o rádio.
Amadeu, demonstrando o vigor da mente, ligando para um de seus contatos salvos na memória.
Nessa época, a Rádio Imperatriz, pioneira da cidade, era a sua emissora favorita. Ele participava quase todos os dias da programação, tanto para se informar quanto para se divertir. Com o encerramento de suas atividades, ele migrou para a Rádio Mirante FM e se tornou um ouvinte fiel do programa “A Noite é Nossa”, apresentado por Sitônio Silva. Lá, continua pedindo músicas e enviando “alôs” para amigos e familiares.
A comunicação de Amadeu com as rádios ocorre por meio de um aparelho de telefone analógico que ele preserva na sala. Todos os dias, recorre à sua memória – onde guarda cerca de cinquenta números – para ligar aos programas radiofônicos e conversar com sua rede de contatos. Quando pega o aparelho, tecla lentamente, número por número, como quem reafirma, em cada chamada, sua ligação viva com o mundo.