Entre a cruz e as cores, entrevista com um padre em defesa da diversidade

Repórteres: Edlene Galeno e Vitória Guajajara 

Fotos: Edlene Galeno e acervo 

Chegamos ao consultório do padre e psicólogo Elisvaldo Cardoso no meio da tarde de terça-feira, 24 de junho de 2025, onde já nos aguardava para a nossa entrevista previamente marcada sem maiores dificuldades pela disponibilidade e simpatia do entrevistado. Logo mais, ao entrar, fomos direcionadas para a sala onde ele realiza seus atendimentos.

Elisvaldo Cardoso Silva foi ordenado padre em 2001 e desde de então já foi pároco em João Lisboa (2002-2005), Amarante do Maranhão (2005-2006), vigário em João Lisboa (2023-2024) e atualmente é voluntário da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac). Psicólogo formado desde 2013, utiliza uma metodologia inovadora em seus atendimentos, estruturada em grupos reflexivos, abordagem que permite um acolhimento mais profundo e humanizado, proporcionando aos participantes uma visão holística de si mesmos e do próximo. 

Insatisfeito com a má gestão dos últimos quatros anos, em julho de 2024 nasce o colegiado As Vozes da Cidadania ITZ, criada pelo padre, que busca conscientizar a comunidade sobre o voto consciente, sobre a ética, cidadania e sobre exigir os direitos, cumprirem seus deveres com responsabilidade e capacitar os cidadãos para fiscalizar melhor as políticas públicas.

Fazem parte desse colegiado diversas entidades civis organizadas, entre elas está o coletivo ArcoITZ (junção de arco-íris e Imperatriz), que discute assuntos relacionados a comunidade LGBTQIAPN+ (lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexo, assexuais, pansexuais, não binárias e outras que fogem das normas tradicionais), que foi quem convidou Elisvaldo para estar presente na tribuna que aconteceu na Câmara Municipal de Imperatriz no dia 03 de junho, terça-feira para debater sobre a resistência e valorização da comunidade, onde o padre teve um espaço para fala e expressou por meio de palavras seu apoio e respeito com a comunidade LGBT, o gerou um imenso desejo de fazer uma entrevista com o padre apoiador da causa, em tempos de tantos preconceito.

Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) – 2019, cerca de 69 mil adultos se declaram homossexuais ou bissexuais no Maranhão. Em Imperatriz a comunidade LGBT tem ganhando mais visibilidade e direitos através de eventos e iniciativas promovidas por diversos órgãos e instituições, entre elas estão a primeira Conferência Municipal sobre os Direitos LGBTQIAPN+, que foi um marco importante, realizada nos dias quatro e cinco de novembro de 2024, no auditório da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e abordou temas como direitos humanos, saúde, educação, segurança e empregabilidade. Neste ping-pong debatemos e refletimos sobre temas como desafios enfrentados pela comunidade dentro do contexto religioso, interpretações erradas da Bíblia, política, a “cura gay” na na psicologia, o futuro da Igreja Católica em relação a inclusão da comunidade e dentre outros assuntos. “Retroceder, jamais.”

Eu já propus para a gente, inclusive aqui [Imperatriz], fazer uma pastoral com pessoas LGBTQIAPN+, e ainda não foi possível, até porque as próprias pessoas que têm mais consciência nem sempre têm uma participação ativa na Igreja

Imperatriz Notícias: Você já enfrentou resistência ou críticas por apoiar a comunidade LGBT?

Pe. Elisvaldo Cardoso Silva: Dentro da Igreja é necessário coragem. Até dentro da igreja, é necessário coragem. E o que fez com que eu também, apesar de que não é bem essa pergunta, me apaixonasse também por esta causa é, justamente, tanto a minha formação religiosa, claro, mas a minha formação em Psicologia. Isso, querendo ou não, escutando mais ainda. Como padre, já escutava; como psicólogo, escuto muito mais as dores das pessoas, a angústia silenciosa delas. Então, não tem como eu ficar de braço cruzado. Tem aquela história: todo mundo pode, como diz o outro, virar contra mim. Mas, se eu tenho a minha consciência, o que eu estou fazendo é para o bem do próximo, e não estou sendo causa de queda para ninguém. Ó [bate as mãos com indiferença], tô nem lá pra quem não concorda. Então, assim, tem resistência dentro da igreja? Tem. Eu já propus para a gente, inclusive aqui [Imperatriz], fazer uma pastoral com pessoas LGBTQIAPN+, e ainda não foi possível, até porque as próprias pessoas que têm mais consciência nem sempre têm uma participação ativa na Igreja. E aqueles que a gente sabe que são assumidos e que têm trabalhos dentro da igreja não querem, eles têm medo das reações. Então, eu também respeito, mas, assim, há uma certa resistência, sim.

IN: O senhor falou que queria criar uma pastoral com pessoas da comunidade LGBT. Além disso, quais mudanças você gostaria de ver na abordagem da igreja em relação à diversidade sexual e de gênero?

EC: Não somente a abordagem na visão sexual da questão do gênero, mas também a questão das mulheres. Isso é muito importante, porque a mulher é tudo na igreja, tudo! Mas ela não tem quase nenhum poder na igreja. A gente sabe disso, né? De forma que é importante que haja essa visão e esse comportamento de acolhimento das pessoas LGBT. Mas o acolher, não no sentido de acolher com restrição para julgar, mas acolher possibilitando que a pessoa, de fato, tenha a sua vida verdadeiramente. 

Então, com relação à questão das mudanças na igreja, para mim, sinceramente, o primeiro e mais importante passo é a forma de acolher a pessoa. Eu penso que isso, na sociedade que a gente vive, eu até estava escrevendo um artigo esses dias e eu falava justamente isso: nós somos avaliados; hoje, tem valor quem tem muitos seguidores nas redes sociais ou, se for no sentido físico, tem valor, tem respeito, quem anda com a roupa de marca e etc. Então, para mim, o primeiro ponto é esse: acolher a pessoa como ser humano, como qualquer ser humano. Não tratar como coitadinho ou coitadinha, mas também não tratar com desprezo, para esconder: “ah, tu não pode falar porque tu é assim, tu fica lá nos bastidores”, digamos assim. Isso não, mas acolhimento, de fato, ver na pessoa LGBT, como eu diria, se vê em qualquer ser humano, que ele, de fato, ela tenha o seu espaço devido na igreja, como qualquer homem ou mulher tem, de liderança, de coordenação, de pregação.

IN: Alguns profissionais da psicologia utilizam argumentos religiosos para tentar aplicar a “cura gay” em seus pacientes. Você como psicólogo o que acha sobre esse tipo de abordagem?

EC: Como a gente já viu até a nível de mídia nacional, isso é um crime. É um crime porque, em primeiro lugar, o papel da psicologia é acolher e possibilitar, a partir da terapia, da sessão e dos questionamentos, que a pessoa tenha insights, ou, como eu diria, “luzes” diante da sua dor e do seu sofrimento. A psicologia não está aí para curar ninguém. O psicólogo não faz tratamento; ele faz terapia, o que é diferente, ou psicoterapia. Então, a pessoa que fala isso já está correndo o risco de incorrer em um crime. É a mesma coisa se fosse no contexto religioso. Nós sabemos que a Organização Mundial da Saúde (OMS), há muitos anos, deixou muito bem claro que a homossexualidade não é uma doença. É importantíssimo que nós também tenhamos essa convicção, e é importantíssimo que nós, seja como padres, como líderes religiosos, mas especificamente como profissional da saúde, da psicologia e da assistência, tenhamos essa convicção para que a gente possa ser semeador, multiplicando essa visão, para que esse tipo de pensamento realmente, cada vez mais, tenha menos espaço em nossa mentalidade, em nossa convivência e na sociedade que a gente vive.

“Com relação à questão das mudanças na igreja, para mim, sinceramente, o primeiro e mais importante passo é a forma de acolher a pessoa”

IN: Padre, muitas vezes ouvimos fiéis e até líderes da Igreja citando passagens bíblicas como ‘amar ao próximo como a si mesmo’. No entanto, ainda vemos resistência e preconceito dentro da própria comunidade religiosa, especialmente com relação à comunidade LGBT. Como o senhor enxerga essa contradição entre o discurso do amor cristão e certas atitudes excludentes dentro da Igreja?

EC: É aquela questão. Às vezes, a pessoa usa ou faz até a citação bíblica como forma de esconder, o seu ódio e sua ferida.  Então, como diz, é muito fácil a gente estar ali na frente e falar; outra coisa é você viver. Por exemplo, eu, como padre, é muito fácil eu falar do amor da família. Agora, eu ser um pai de família, ser uma mãe de família, eu conviver anos e anos, já muda as coisas. Esses pontos precisam ser considerados, mas é importante que a gente, claro, se empenhe e se esforce para que a gente tenha um mínimo de coerência com aquilo que ouvimos, que escutamos, que acreditamos e aquilo que vivemos. Porque, senão, fica só um sofismo, uma falácia e não faz sentido. É lamentável, não que a gente tenha que ser perfeito, mas é lamentável a pessoa que, às vezes fala do amor, mas que não há um empenho na vivência desse amor.

IN: Padre, mesmo com tantos debates dentro da igreja para combater o preconceito contra a diversidade de gênero, por que ainda existem pensamentos conservadores sobre a comunidade LGBT dentro da própria igreja?

EC: É aquela questão: a Bíblia tem alguns textos que falam, lembro que Paulo, não sei qual versículo agora, nem o livro, mas ele diz: “Nenhum afeminado entrará no Reino do céu”. O Apocalipse também fala alguma coisa semelhante. E aí, tem muita gente que vai muito ao pé da letra da palavra de Deus. Pena que muitos católicos não conhecem, mas a Igreja Católica tem documentos que orientam como a gente deve interpretar a palavra de Deus, para evitar esse tipo de pecado, até de fanatismo. Mas, querendo ou não, tem isso. Esse é um aspecto; o outro é justamente da gente querer que as coisas sejam apenas do nosso jeito. Quer dizer, o Howard Zehr, que é um dos criadores da justiça restaurativa, diz que é importante a gente trocar as lentes. Trocar as nossas lentes significa você ter empatia, conseguir se colocar no lugar do outro, porque quando a pessoa age com preconceito, com discriminação, é porque ela não sabe o que é empatia; ela não consegue trocar as lentes dela. Olhar a vida com outro olhar. Outro ponto que eu vejo muito importante, é justamente de você não ter a capacidade, de fato, de permitir que a pessoa seja ela mesma. E, ligado a isso, você entender qual é a sua história, quem é você. Aqui, não sabemos, mas se formos olhar a pessoa homossexual, seja rapaz ou moça, muitas vezes, também pela própria sociedade, pela família e pela formação que a pessoa tem, é uma pessoa que sofre. É uma pessoa que sofre o que já sofreu antes. É tanto que tem aquela história: “ah, fulano saiu do armário”. Eu, sinceramente,  dou o maior, não é nem dez, mas o maior mil para o homem ou para uma mulher que assume de forma consciente a sua orientação sexual. Porque isso aí não é para qualquer um, não. Eu costumo até dizer que o que caba para fazer tem que ser macho. A mulher tem que ser fêmea. Você está entendendo? Porque, querendo ou não, você vai colocar a sua cara à tapa. Então, assim, muitas vezes a pessoa prefere viver sofrendo. Conheço casos, vocês também, de pessoas que às vezes são casadas, têm filhos, mas que nunca foram felizes na relação. Conheço casos de gente que, depois que criou os filhos, separou e foi viver a sua vida do seu jeito. Então, assim como dizem, antes tarde do que nunca, mas querendo ou não, não é fácil. Então, tudo isso precisa ser visto. Por isso que eu digo, é necessário se colocar no lugar do outro.

IN: Padre, você tem uma iniciativa independente chamada “colegiado As Vozes da Cidadania ITZ” , que é um projeto que busca a conscientização de votos  e um dos lemas é sobre mudança social, qual sua abordagem em relação a candidatos progressistas?

EC: Eu penso que antes de você olhar o candidato progressista, digamos assim, ou não, é você ver qual a história dessa pessoa. Você também deve ter conhecimento do projeto político dessa pessoa, para que possamos saber. Porque, às vezes tem uns progressistas, como diz o texto bíblico, são lobos em pele de cordeiro, que só tem seu interesse, assim como os conservadores. Então, isso é muito relativo. Mas, a princípio, eu vejo com excelentes olhos.

IN: Como voluntário da Apac, já aconselhou algum detento LGBT?

EC: Sim, já mais de um. E se na sociedade é complicado, no sistema prisional, aí que é difícil. Porque se a pessoa chega lá como homossexual assumido, ele corre um grande risco, porque há risco de estupro, violência e abuso, que às vezes acontece. Tanto que nós, os direitos humanos, a pastoral carcerária, sempre lutamos para que haja um local específico para esse público no sistema prisional, como deve ser também para as mulheres. E, às vezes, até as mulheres aqui de Maranhão são colocadas junto com os homens, não na mesma cela, mas no mesmo presídio, quanto mais LGBT. Mas é uma luta contínua e esse é o problema. E o outro é aquela história: aquela pessoa que, às vezes, não pode de forma alguma se manifestar ali, porque senão pode ser retalhada, sofrer represálias, ser discriminada ou até nem mesmo aceita dentro da cela. Mas eu conheci, acompanhei e conheço pessoas assim no sistema prisional.

IN: O papa Leão XIV mantém o posicionamento do papa Francisco de que os católicos da comunidade LGBT são bem-vindos, porém segue o posicionamento da igreja de que a família é baseada apenas na união entre homem e mulher. O que o senhor como padre e apoiador do movimento diz sobre esse posicionamento contrário ao seu?

EC: Eu vejo assim: a palavra de Deus nos diz: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em plenitude”. Então, se a nossa missão é fazer com que as pessoas tenham vida, nós não podemos fechar uma porta. É claro que a Igreja não pode proporcionar o sacramento do matrimônio para pessoas do mesmo sexo, digamos assim. Mas você acolher, por exemplo, permitir que essa pessoa se engaje em alguma pastoral, algum trabalho na Igreja e etc. A benção, por exemplo, é uma coisa que o Papa Francisco fez que muita gente achou muito estranha: a benção da pessoa. Todo mundo tem direito; o animal, por exemplo, tem o dia de São Francisco, e os animais todos recebem a bênção. Então, por que o casal homossexual não teria esse direito?

IN: Com o que o senhor observa de outras religiões, você acha que elas têm mais aceitação? Ou elas também são relutantes em aceitar a comunidade LGBT?

EC: Eu penso que o cenário é até mais preocupante, porque dentro da Igreja Católica, eu diria que essa é uma área com um número menor de pessoas que tem uma certa resistência. Já nas Igrejas Evangélicas, infelizmente, é o contrário. Algumas igrejas, a gente sente mais uma abertura; outras, é uma condenação muito grande. Então, é um desafio também. Mas isso vai muito de pessoa para pessoa.

IN: Nas religiões de matrizes africanas, têm uma aceitação maior com a comunidade LGBT. O senhor acha que eles estão mais evoluídos nesse quesito?

EC: No sentido humano, eu não tenho dúvida. Só o fato de permitir que a pessoa esteja ali, seja o que ela for, o que ela quer ser, que ela é acolhida e valorizada. A gente sabe que tem muitos terreiros que têm pais de santos, que são assumidamente homossexuais e estão ali, assumindo e cumprindo o seu papel. Isso aí é uma bênção muito grande. Muito grande. 

IN: Como o senhor enxerga o futuro da Igreja em relação à inclusão da comunidade LGBT?

EC: Estamos no ano da esperança, na Igreja católica, no ano jubilar, no mundo todo. Eu vejo com esperança. Eu tenho certeza que, mesmo o Papa Francisco já estando na paz eterna, em Deus, as tantas coisas maravilhosas que ele trouxe e anunciou, que ele pregou, é algo dele, mas é algo também de muitas outras pessoas que estavam ao redor dele, digamos assim. Então, eu tenho certeza, em nome de Jesus, que isso não vai ser em vão. Por mais que tenha alguém que tenha uma outra visão, mas essas coisas não podem, como disse, ficar para trás. E depende de todos nós, enquanto cristãos, não permitir que haja retrocesso. É aquela velha história: retroceder, jamais. Esse, inclusive, foi um dos objetivos, um dos porquês. A gente criou o colegiado as vozes da cidadania para que a Imperatriz nunca mais passasse pela experiência do Assis [ex-prefeito de Imperatriz] que passamos nesses últimos anos, de ver as pessoas tendo que fazer rifa, bingo, apelando até pela misericórdia para conseguir um exame para um parente, e o povo morrendo no socorrão [Hospital Municipal de Imperatriz], e outras pessoas sorrindo na nossa cara. Então, não podemos permitir, mais que isso aconteça.