Texto: Luana Santos e Sara Carvalho
Fotos: Luana Santos, Sara Carvalho e acervo pessoal
Quem ama, cuida. Mas e quando o cuidado vira uma obrigação legal? A Justiça brasileira já reconhece: vínculos afetivos construídos com responsabilidade podem gerar direitos e deveres, inclusive o de pagar pensão. Nesta entrevista do Imperatriz Notícias vamos ajudar você a entender o que é pensão socioafetiva e por que ela pode mudar o conceito de família no Brasil.
O que torna alguém pai ou mãe? O DNA? A certidão? Ou o cuidado cotidiano, a presença, o carinho? Em tempos de famílias diversas e afetos plurais, o Direito brasileiro tem reconhecido o que a vida já mostra há muito tempo: é possível ser pai ou mãe por escolha e por convivência.
É nesse contexto que surge a paternidade socioafetiva, quando uma pessoa cria um filho que não é seu biológico, mas com quem constrói laços tão legítimos quanto qualquer outro. E, dessa relação, pode nascer também o direito à pensão socioafetiva, uma obrigação legal que vem ganhando espaço nos tribunais do país.
Embora ainda não exista uma lei específica sobre o tema, decisões dos tribunais superiores, o artigo nº 1.593 do Código Civil e a própria Constituição Federal têm respaldado esse direito. Em Imperatriz (MA), relatos de casos semelhantes têm surgido com mais frequência, acompanhando as transformações sociais e o reconhecimento de novos arranjos familiares. Por se tratar de um tema sensível e que envolve o direito à intimidade, muitos desses processos tramitam em segredo de Justiça, o que dificulta o acesso a dados oficiais. Ainda assim, em âmbito nacional, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) aponta que o reconhecimento da multiparentalidade tem sido cada vez mais aceito no Judiciário.
Para entender os caminhos legais e humanos por trás desse tema, conversamos com Ronaldo Jorge Ferreira Costa, advogado especialista em Direito de Família e Sucessões formado pela Faculdade de Imperatriz (Facimp). Atualmente em Imperatriz (MA), também tem formação em Geografia pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e passou parte de sua carreira como professor da rede pública o que o aproximou das realidades enfrentadas por crianças em contextos de vulnerabilidade. Essa trajetória fez com que ele enxergasse, desde cedo, o impacto que o afeto e o cuidado constante têm na vida de um filho, mesmo quando não existe laço biológico.
Na entrevista a seguir, Ronaldo responde perguntas essenciais sobre direitos, preconceitos, desafios, aceitação social e o impacto real dessas decisões na vida das crianças. Acompanhe:

“Não tem como você ter um filho e depois voltar atrás. ‘Ah, eu não quero mais esse filho’, Filho é para sempre”.
Seu Ronaldo, nos últimos tempos, especialmente nas redes sociais como o TikTok, muita gente tem falado sobre “pensão socioafetiva”, mas nem todo mundo entende o que isso realmente significa. Para quem nunca ouviu falar, o que é pensão socioafetiva e em que situações ela se aplica?
Ronaldo Jorge: A gente sabe que existe a paternidade sanguínea, existe a paternidade por adoção e, mais recentemente, a paternidade socioafetiva, que é uma forma de ligação, de parentesco, que se dá em função do afeto e não por meio de laços consanguíneos. Ela surge da convivência e do cuidado. E, se essa criança tem uma relação afetiva com esse padrasto ou com essa madrasta, em que ele participa da educação, em que ele cuida dele, isso dá o direito desse filho ter essa paternidade socioafetiva, de ter esse reconhecimento judicial. E, a partir daí, gera a obrigação de uma pensão socioafetiva, caso esse filho decida entrar na Justiça para exigir o direito que a lei garante para ele.
IN – Uma criança pode ter direito a pensão alimentícia tanto do pai biológico quanto de um padrasto ou madrasta que exerceu o papel de pai ou mãe afetivo? Como a Justiça entende esses casos?
R.J- Não. Ela pode receber essa pensão de uma pessoa, seja o padrasto ou a madrasta, dependendo da situação, de quem seria. Ela vai ter direito a receber uma pensão. Por exemplo, se a mãe vem de um relacionamento e, nesse novo relacionamento, ela traz um filho, e esse filho convive ali no novo formato do casal, da nova família, e esse padrasto reconhece, educa, sustenta essa criança e, depois, esse novo casal se separa, então essa criança pode requerer o direito à pensão socioafetiva desse pai. Então, ela tem direito a receber uma única pensão.
IN – Em termos legais, filhos socioafetivos têm os mesmos direitos que filhos biológicos?
R.J- Sim. A lei garante que não deve haver discriminação entre filho biológico, filho adotivo e filho socioafetivo, que são três situações diferentes. Então, se há um reconhecimento legal de que ele foi adotado a partir do laço de afetividade, ele tem os mesmos direitos que um filho consanguíneo e que um filho adotivo. A lei garante que todos eles têm os mesmos direitos no que diz respeito à sucessão, à herança basta que ele tenha o reconhecimento.

“A adoção afetiva, da socioafetividade, também se estabelece nas relações homoafetivas, da mesma forma que uma relação heteroafetiva. Não há distinção, a lei não vai discriminar”
IN – E as pessoas LGBTQIAPN+ também podem entrar com ações desse tipo?
R.J- Se enquadra da mesma forma. A gente entra no cenário LGBT a partir da concepção dos novos modelos de família. Porque a família sempre foi a família tradicional: pai, mãe e filhos. Mas, com a Constituição de 1988, veio a questão da família monoparental, onde uma mulher sozinha e o filho dela é uma família, um homem sozinho e o filho é uma família. E, aí, depois, também entra a questão da homoafetividade. A adoção afetiva, da socioafetividade, também se estabelece nas relações homoafetivas, da mesma forma que uma relação heteroafetiva. Não há distinção, a lei não vai discriminar. E, em se tratando do direito de família, quando se envolve crianças e adolescentes, tem que se obedecer o princípio do maior interesse da criança. Então, a criança deve estar em primeiro lugar em qualquer situação.
IN – Essa pensão pode atrapalhar novos relacionamentos? Tipo, alguém deixar de se envolver com quem tem filhos com medo de pagar pensão?
R.J- É possível que tenha pessoas que têm esse certo tipo de preconceito com um novo relacionamento, com uma pessoa que já vem de um relacionamento anterior e que, desse relacionamento, já traga um filho. Mas, para que não haja essa relação socioafetiva, é preciso obedecer alguns requisitos, se ele quebra o laço de relacionamento entre o pai ou a mãe biológica e a criança, e ele assume a total responsabilidade daquela criança, se aquele filho quiser, ele vai responder e vai ter que pagar uma pensão socioafetiva. Mas, se o laço do pai biológico com a criança é mantido, esse é um ponto que faz com que ele não pague futuramente essa pensão socioafetiva. Manter o laço biológico do pai e da criança é um ponto que pode livrar essa pessoa de pagar essa pensão socioafetiva.
IN – Quem assume a responsabilidade socioafetiva por uma criança pode, no futuro, desistir desse vínculo e deixar de arcar com obrigações como a pensão?
R.J- Não pode. Esse é um ponto importante. A lei é muito clara e existem os ordenamentos jurídicos que falam sobre isso. Não tem como você ter um filho e depois voltar atrás. “Ah, eu não quero mais esse filho.” Filho é para sempre. É preciso, no direito de família e, sobretudo, quando se trata da questão que envolve criança e adolescente sempre observar o melhor interesse da criança. Então, se um pai fez essa questão da adoção socioafetiva, da pensão socioafetiva, ele não tem mais como voltar atrás. Ele aceitou aquele compromisso, e é como se fosse um filho consanguíneo, com os mesmos direitos, com as mesmas obrigações. A não ser que, nessa adoção socioafetiva, possa ter tido algum tipo de fraude no início, e alguém tenha sido levado a erro, enganado. Mas é muito difícil isso acontecer. Caso contrário, caso não tenha nenhum erro, não volta atrás. É para sempre.
IN – Como o senhor avalia o impacto emocional e humano nos processos que envolvem vínculos afetivos e responsabilidades legais, como a pensão socioafetiva?
R.J- Muito humano. Porque, veja bem, essa minha vivência na escola, sobretudo na rede municipal geralmente, todo início do ano, quando a gente assume uma turma, tentamos fazer um levantamento das crianças, quem são, com quem moram. E é impressionante como quase 50% delas não têm uma família estruturada. Tudo vem de uma família disfuncional, digamos assim. Ou mora com a avó, ou mora só com a mãe. Um ou outro mora só com o pai. Então, há uma carência muito grande, porque isso se reflete lá na escola. Diante disso, trazer o direito, oportunizar para que essas crianças possam ter uma figura, mesmo que seja socioafetiva, eu acho que é de uma humanidade muito grande. A sociedade precisa disso. Infelizmente, não é todo mundo que tem acesso. E muitos vão continuar sem ter o pai, sem ter a figura da mãe. Mas isso preenche uma lacuna na sociedade de crianças que podem ter uma situação melhorada, que pode se refletir até lá no contexto escolar.
IN – O senhor já atuou em algum caso emblemático assim?
R.J- Vou falar de forma bem discreta, superficial, são casos que envolvem segredo de justiça. Isso faz parte da ética profissional. Mas eu posso falar, sem citar nome, de um caso em que atuamos: houve uma relação marital de uma pessoa que foi casada e, posteriormente, se separou, ficando com um filho pequeno. Perdeu o vínculo, não quis mais a aproximação do pai biológico da criança e, em um dado momento, ela passou a conviver com outro esposo. A criança foi cuidada pelo atual, tinha relação de pai e filho, chamava de filho e sustentava. Só que, em determinado momento, perdeu a relação, a ligação com o pai biológico, não queria mais essa relação, e, em um dado momento, acabaram se separando de novo. Essa criança, com a mãe, viu que havia uma brecha na lei e entrou com o pedido de pensão socioafetiva, que foi reconhecido. E foi, assim, uma felicidade muito grande, porque a criança tinha um afeto. Criou-se um vínculo e, como eu disse lá no início: depois do vínculo ser criado, não importa se biológico, adotivo ou socioafetivo é a mesma coisa, é o mesmo sentimento. A criança, com a mãe, claro, entrou na Justiça e teve seu direito garantido de ter essa paternidade socioafetiva e o direito à pensão.
IN – E, quando esse pai foi acionado pela Justiça, qual foi a reação dele?
R.J- Foi resistente, assim, ficou surpreso. Mas existia o amor entre ele e a criança. Apesar de estar separado da mãe biológica da criança, existia o amor. E, por mais que tivesse, num primeiro momento, uma certa rejeição, ele entendeu e aceitou a determinação judicial para a pensão socioafetiva.
IN – Para encerrar: que mensagem o senhor deixa para quem vive uma relação de afeto e tem medo de procurar seus direitos?
R.J- Nunca deixe de procurar aquilo que a lei lhe garante. Você deve, em primeiro lugar, claro, observar o princípio do melhor interesse da criança e a criança deve estar em primeiro lugar, sempre. E, se há possibilidade de entrar com uma ação, ou mesmo reconhecimento em cartório de uma relação de socioafetividade, seja com o pai, seja com a mãe, que faça. Isso vai ser muito bom para o desenvolvimento da criança, e ela precisa desse reconhecimento da presença dessa figura para que possa crescer.