Trabalhadores narram os desafios do trabalho itinerante e a luta por espaço
Amine Maria
“Comece a pagar só em abril. A Renovar, no clima do Carnaval”. Vai e vem de ônibus, pessoas caminhando, barulho do carro com as promoções do dia e de repente alguém grita: “Olha a água!”. No cotidiano da Praça Brasil, essas cenas são comuns. Construída na década de 1960 e localizada no centro de Imperatriz (MA), surgiu em um momento de grande desenvolvimento urbano, em uma área de alta circulação de pessoas e serviços.
O local conta com pontos de ônibus e táxi, escola, banco, igreja e estabelecimentos comerciais próximos. Entre os personagens presentes no cotidiano, os vendedores ambulantes fazem parte da história da Praça Brasil e relatam suas experiências com o comércio informal.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua-IBGE), em 2024, cerca de 25,4 milhões de pessoas trabalharam por conta própria no Brasil. Entre os trabalhadores informais, categoria em que se enquadram os vendedores ambulantes, esse número representa cerca de 39,8 milhões de pessoas. Em virtude da insegurança inerente à profissão, muitos camelôs temem perder seu sustento.
É na praça que cada comerciante organiza suas vendas, tentando se aproximar ao máximo dos clientes que passam pelo local. Ao contornar o espaço, é possível identificar o setor onde eles se organizam em maior concentração. Apesar de estarem frequentemente circulando em torno dela, todos possuem seus lugares estabelecidos e quem se atrever a ocupá-los sem aviso prévio vai enfrentar represálias. Por lá, há uma grande quantidade de carrinhos, a maior parte de comidas e bebidas, seja debaixo de uma tenda, guarda-sol ou apenas uma lona improvisada. Outros ambulantes, sem tantos recursos, utilizam apenas uma mesa para expor itens artesanais, como brincos, colares e anéis.

Não tão distante, observam-se caixotes de madeira rústicos servindo como apoio para frutas como manga, banana, laranja e uva. Além disso, há amendoim e castanha de caju torrados, pendurados em sacos pequenos acima das frutas, uma variedade de alimentos que ficam à escolha do consumidor que transita por ali. Enquanto isso, outros vendedores ambulantes movimentam-se pela praça com uma caixa de isopor ou caixa térmica, oferecendo água mineral, água de coco ou geladinho. Ao comercializarem os produtos, não é incomum que façam a mesma promessa: aliviar o calor em dias de altas temperaturas.
De acordo com a Lei n° 6586, de 6 de novembro de 1978, que estabelece as normas para a atividade dos vendedores ambulantes, esta categoria engloba aqueles que realizam práticas comerciais por conta própria em espaços públicos ou em trânsito. Essa mesma lei também dispõe sobre a autorização para atuar em locais públicos, que é indispensável à categoria. Sobre a fiscalização, a lei institui que ela seja voltada tanto à avaliação das condições de trabalho dos ambulantes quanto à qualidade dos produtos oferecidos aos consumidores. É importante destacar que cada cidade adere às orientações específicas definidas pela administração municipal.
Novidade
Tamires Silva tem 35 anos, e é uma das vendedoras ambulantes mais recentes da Praça Brasil. Ela atua no espaço, de forma independente, há cerca de um ano. A comerciante possui um carrinho de açaí onde prepara o alimento com acompanhamentos e tamanhos personalizados conforme as preferências dos consumidores. Ela comenta que possui uma clientela fixa, muitos compradores ligam solicitando o produto e a vendedora se desloca até eles, uma forma de se adaptar às novas necessidades do mercado. Antes de começar a trabalhar na praça, menciona que já comercializava açaí, porém em um quiosque em um shopping local do qual foi desligada.
Enquanto aguarda os fregueses, fica posicionada atrás do carro escrito “Bora de açaí”. Ela veste uma camisa de manga comprida em dias mais quentes, mas em outro período é possível encontrá-la com uma camiseta personalizada do seu negócio. Tamires declarou que os maiores desafios enfrentados por ela desde que iniciou o trabalho como ambulante têm sido relacionados ao clima. “O momento mais difícil é no inverno, pois as vendas de açaí diminuem. Falta abrigo na chuva”, acrescenta.

Temores
Em um lado da praça, mais afastado dos outros e próximo a uma lanchonete, está um vendedor ambulante que não quis se identificar. Desconfiado, o comerciante mostrou certa resistência à entrevista. “Você trabalha para eles?”, questionou o homem, com receio de que fosse algum fiscal a serviço da prefeitura.
O ambulante não consegue lembrar com exatidão há quanto tempo atua nesse setor vendendo suas variedades, apenas recorda brevemente. “Estou aqui desde a administração do prefeito Sebastião Madeira [janeiro de 2009 a dezembro de 2016]”. Antes, possuía um emprego em regime CLT, e por motivos não declarados por ele acabou saindo. Em seguida, enfrentou desafios para se ajustar ao mercado. Segundo ele, esses obstáculos estavam relacionados à sua idade naquele período. Desde então, mesmo sendo aposentado, encontrou no comércio itinerante uma maneira de complementar sua renda.
Morador do Parque Santa Lúcia, ele conta que vem do seu bairro até a praça de ônibus e segue em direção ao local onde guarda seu carrinho com as mercadorias, em um estacionamento. “Todos os dias eu venho, mas as coisas eu guardo ali”. Logo depois, ele conduz o transporte de duas rodas pelas ruas até chegar ao seu espaço na praça.
Enquanto fala, economizando as palavras, o vendedor ambulante aguarda seus fregueses sentado em um banco de concreto/mármore ao redor de uma das árvores características do espaço, uma mangueira. Nesse momento, um cliente, um homem alto e de meia idade, chega próximo a ele perguntando pelo proprietário dos artigos.
Entre os itens à venda, nota-se uma galinha amarela de brinquedo feita de borracha maleável, presa em um dos poucos espaços vazios daquele carrinho. Quando pressionada com as mãos, ela solta ar em forma de um grito que simula o som natural da ave. Segundo o ambulante, todas as mercadorias são adquiridas em lojas do centro da cidade e revendidas por ele. Ao finalizar o dia, o comerciante toma o ônibus com destino à sua casa depois de ter guardado seus pertences.
Desunião
Não é por acaso que a praça se chama Brasil, muitas realidades brasileiras se encontram nesse ambiente. O retrato da diversidade constrói o cotidiano da praça, inclusive daqueles que já percorreram outros caminhos dentro e fora da cidade. Rafael Adriano, de 38 anos, relembra a época em que desembarcou em solo imperatrizense.
Natural de Salvador (BA), Adriano atua como camelô desde muito cedo e está na Praça Brasil há nove anos. Ao se aproximar dele, é possível avistá-lo em frente ao seu trailer, organizando acessórios em uma mesa debaixo de uma tenda vermelha, entre a banca de jornal e a parada de ônibus. Entre a multiplicidade de produtos oferecidos pelo vendedor estão: acessórios para celular, eletrônicos, brinquedos, óculos de sol, lanterna, boné e joias. Sua rotina inicia no horário da manhã e se estende durante todo o dia. “Quando dá 17h30, eu fecho tudo, engato o trailer e levo para casa”.

“Baiano”, como também é conhecido, afirma que, devido à vida como vendedor itinerante, já percorreu cidades e lugares além dos limites do país, da Guiana Francesa, que é uma região ultramarina da França, até o Suriname. “Já corri o mundo afora trabalhando de camelô”. Em uma dessas caminhadas, passou por São Luís (MA), Fortaleza (CE), São Paulo (SP), além de outros estados, e por último deslocou-se para Imperatriz, onde permanece até hoje.
Rafael Adriano considera a cidade como um lugar tranquilo para se trabalhar. “Parei aqui, casei e criei filhos”. Mas não deixa de lembrar das dificuldades que vivenciou pelos territórios em que ele esteve. “Em outros lugares, eu já enfrentei o pessoal tomando minha mercadoria”, ‘rapa’, ou situações de ter que queimar pneu e reivindicar até com mais truculência”. Ele ressalta que já ocorreram fiscalizações no logradouro, porém, sem tanto apelo à violência. “Só jogam a gente para outro canto, no meio do sol”.

Para “Baiano”, o ofício dos ambulantes vai além da comercialização de produtos. Muitos clientes e pedestres que circulam pela região relatam ao vendedor que podem andar por ali com mais tranquilidade quando os vendedores estão presentes no ambiente. “As pessoas se sentem mais seguras com a gente aqui. Elas comentam: ‘se tirarem vocês daqui essa praça fica abandonada’”.
“É a gente que faz a praça, a movimentação da praça”, destaca Rafael. No entanto, quando se fala da relação entre os próprios ambulantes, ela não soa harmoniosa, mas sim distante, demonstrando contraste de opiniões entre os trabalhadores mais recentes e mais antigos. Fato pontuado pelo discurso de “Baiano”, que em outro momento já foi o presidente da Associação dos Camelôs de Salvador (BA).
O vendedor ambulante reforça que tem o desejo de formar uma associação local, no entanto, revela que falta cooperação entre os comerciantes de rua em busca de organização, direitos e melhorias. “Camelô é uma classe muito desunida”, afirma. Quanto à relutância entre os vendedores mais velhos e os mais jovens, mencionada por ele, declara que isso tem a ver com a forma de pensar e não com a idade.
Tempo e história
Maria Antônia tem 76 anos e é uma das primeiras vendedoras ambulantes da Praça Brasil. A mulher, com a pele curvada em dobras e marcada pelo sol, à medida que se aproxima, destaca os cabelos brancos presos em um coque mais confortável. Sentada em uma cadeira de plástico, ela apoia uma das mãos em um pedaço de madeira e a outra no braço da cadeira, enquanto narra sua história com o lugar sob a sombra de uma árvore. Com um detalhe que a deixa orgulhosa, a árvore em questão é a mesma que ela plantou há 14 anos, um oiti.
Como trabalhou por longos períodos expostos ao sol, “Caçula”, como é conhecida, viu no plantio das árvores uma forma de amenizar o calor e trazer sombra ao ambiente. Ela garante que faz o máximo que pode para cuidar das plantas e anuncia: “Gente! Essa sombrinha fui eu que fiz”. A comerciante de rua diz, sorrindo em tom bem-humorado, que pretende fazer uma festa para o pé de oiti, que foi plantado no dia 17 de setembro de 2011.

Antônia conta que atua como ambulante no mesmo ponto há 40 anos, e recorda o trajeto que realizava no passado. Ela se locomovia da Vila Ipiranga até a praça a pé, carregando um de seus oito filhos no colo. “Eu vinha com a Manuela nos quartos, uma caixa dessas de banana na cabeça com a rudia, um balde de salada de fruta dentro da cesta e cinco litro de suco na mão, até chegar na Igreja São Francisco”. Acrescenta ainda que permaneceu se deslocando até o logradouro a pé por sete anos, até possuir condições financeiras para pagar a passagem de ônibus.
Não demorou muito para que a vendedora adquirisse um carro de mão, que a auxiliou a levar os artigos até o local de trabalho, além de ser usado também para transportar as crianças. Foi em uma dessas rotas, enquanto passava pelo Mercadinho, com destino à Praça Brasil, que recebeu o apelido de “Caçula”. Ela comenta que os açougueiros da região, quando a avistavam passando com os filhos, disparavam: “Lá vem a Caçula”. E lhe davam uma “trouxinha de carne”.
Caçula afirma que encontrou na praça uma oportunidade para ter um rendimento, já que o marido estava fora da cidade e ela precisava trabalhar e cuidar dos filhos. “Ou comia, ou trabalhava, passava fome, ou pedia”, revela. Na época, ela residia em uma casa às margens de um igarapé. Não havia cama para dormir, e frequentemente ela e os filhos adormeciam em cima das tábuas de madeira.
Os próprios sacos de laranja utilizados para o transporte das frutas até a venda na Praça Brasil, posteriormente, serviam como cobertor. “Botava eles dentro de um saco de laranja, laranjinha que eu descascava durante o dia. Tirei tudim de dormir nas taubas e na chuva, e trabalhei e trabalhei, comprei um bocado de coisa no Paraíba e na Liliane”, relembra.
Herança
Hoje, dos filhos de Antônia, apenas Manuela permanece na praça auxiliando a mãe e vendendo seus próprios artigos, bonecas de pano e bolas de ar coloridas. “Manuela começou a trabalhar comigo quando tinha 4 anos, assim que ela aprendeu a se sentar”. Ela rememora que acomodava a menina em cima das caixas e forrava com os sacos vazios das mercadorias. De vez em quando, a filha gritava à mãe quando não conseguia passar o troco para os clientes e a vendedora, que estava de um outro lado da praça, corria apressada para atender.
Manuela Crislane, hoje com 37 anos, não esconde a admiração pela mãe. Relata que Caçula já atuava na praça mesmo antes dela nascer, e possui muito carinho pelo espaço. “Ela gosta muito desse lugar, tem um amor muito grande pela história dela”, comenta. Atualmente, é a mãe quem grita: “Manuela, passa o troco!”.
A vendedora, usuária de cadeira de rodas, se localiza no mesmo espaço de Maria Antônia, do lado direito, próxima ao banco da parada de ônibus. Segundo ela, a rotina de trabalho se inicia às 4h da manhã, quando ambas acordam, e às 6h já estão no ponto de ônibus, aguardando a linha rumo à Praça Brasil.

Crislane afirma que um dos motivos que a fizeram trabalhar na Praça Brasil é o projeto social do qual participa, chamado “Missão social Deus é conosco”. “Vendo minhas bonequinhas para meu projeto social há 17 anos”, declara. Segundo a comerciante itinerante, o programa existe em vários lugares da cidade e no estado de Goiás, funciona como uma corrente: todos os fundos arrecadados com a venda são utilizados para comprar mais bonecas e evangelizar as crianças. “Acho bom porque estou trabalhando, ajudando minha mãe e o próximo”, ressalta.

Resistência
Caçula segue vendendo apenas água mineral, e mesmo sendo aposentada, prefere continuar trabalhando, pois, segundo ela, a rotina como ambulante ocupa a sua mente. “Estou vindo porque eu gosto de trabalhar, se eu ficar em casa, eu fico doente”. Assim que iniciou as vendas do produto, ganhou uma caixa para armazenar as garrafinhas de uma loja de materiais elétricos que fica em frente à praça. “O pessoal da Bela Luz que me deu”.
Os desafios mais recentes que Maria Antônia menciona enfrentar no território têm a ver com a disputa de espaço. Afirma que os outros vendedores querem que ela abandone o seu ponto, porém conclui que não pensa em deixá-lo tão cedo. “Tem gente implicando para eu sair daqui”, diz ela. Caçula conta que essa competição aumentou, pois nos últimos tempos surgiram muitos vendedores novos, diferente de quando ela começou.” Era só eu aqui, era pouca gente”.
Manuela também alegou que observou a quantidade de ambulantes da praça crescer muito, e a concorrência também. De acordo com ela, essa mudança é perceptível, especialmente nos últimos dez anos. “A praça ficou muito cheia”. Já que cada ambulante tem seu lugar, comenta que nem todos respeitam as delimitações, movimentando-se na área de outra pessoa. “A gente não vai para lá, a gente fica só aqui. Ela tem ciúme do lugar dela porque foi ela que fez o local, plantou árvores”, completa.

“Aqui é minha vida, eu nasci aqui, bem aqui nesse lugarzinho”, reforça Antônia. Confrontada pela ideia de abandonar o seu lugar na Praça Brasil, a comerciante itinerante se manifesta. “Só quero sair daqui quando eu morrer, quando eu não puder mais”. A relação de Maria Antônia com a praça é de profundo afeto, antes uma alternativa para sobreviver, hoje, uma resistência à sua história. “Eu vou lutar, pois foi onde minha filha cresceu”, diz ela apontando para o chão onde pisa diariamente.
Esta matéria faz parte do projeto da disciplina de Redação Jornalística do curso de Jornalismo da UFMA de Imperatriz, chamado “Meu canto também tem histórias”. Os alunos e alunas foram incentivados a procurar ideias para matérias jornalísticas em seus próprios bairros, em Imperatriz, ou cidades de origem. Essa é a primeira publicação oficial e individual de todas, todos e todes.