Repórter: Cairo Yuri
A médica imperatrizense Mayara Bezerra Correa do Nascimento, aos 33 anos, já construiu uma carreira sólida na área da pediatria. Atualmente, trabalha no Hospital da Região Leste (HRL) da Secretaria do Estado do Distrito Federal e também coordena a Unidade de Cuidados Intermediários Neonatal (UCIN) da Maternidade de Alto Risco de Imperatriz (MARI). Formada pelo Instituto Tocantinense Presidente Antônio Carlos (ITPAC), sua trajetória profissional é marcada pela dedicação ao cuidado dos recém-nascidos e à promoção do aleitamento materno.
Mayara conta que desde cedo sabia que queria ser médica. O desejo de fazer a diferença na vida das pessoas foi o que a motivou a seguir essa carreira, e durante a faculdade, sua paixão pela pediatria começou a florescer. Ao concluir a graduação, explorou diversas áreas da medicina, mas foi com o público infantil que encontrou sua verdadeira vocação. A escolha pelos cuidados pediátricos e neonatais foi impulsionada pelo entendimento da vulnerabilidade das crianças e pelo desejo de lutar pelos direitos fundamentais, incluindo à saúde e à alimentação adequada. A amamentação exclusiva durante os primeiros seis meses de vida é uma das bandeiras que ela carrega com orgulho.
A jornada de Mayara ganhou um novo significado durante sua residência médica, quando engravidou e se tornou mãe. Foi nesse período que ela vivenciou o acolhimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e das políticas públicas voltadas para a amamentação. Mesmo com uma carga de trabalho intensa, o banco de leite onde trabalhava como residente a acolheu, permitindo que ela mantivesse a produção de leite e, ao mesmo tempo, ajudasse outras mães e bebês que necessitam do alimento.
Ao ser acolhida como paciente no mesmo lugar onde atuava como profissional, Mayara teve a certeza de que queria retribuir esse cuidado e fazer com que outras mães tivessem a mesma oportunidade. Esse desejo se tornou uma missão de vida. Um tema que, para ela, vai muito além de uma prática alimentar, mas que representa um pilar crucial para o desenvolvimento emocional, cognitivo e imunológico das crianças.
Pesquisas corroboram a importância desse compromisso com a amamentação. Um estudo de revisão realizado por pesquisadoras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) indica que a dificuldade de conexão afetiva entre mãe e bebê, a falta de conhecimento sobre a amamentação, além de problemas como anatomia e inflamação do mamilo, são fatores que influenciam diretamente a experiência do aleitamento exclusivo. Ainda assim, apesar dos desafios, os benefícios do aleitamento materno são inegáveis.
Dados do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil indicam que a prevalência de aleitamento materno exclusivo entre crianças menores de seis meses no Brasil era de 45,8%. O índice, embora ainda abaixo do ideal, representa um avanço significativo em relação às últimas décadas – em 1986, por exemplo, o percentual no país era de apenas 3%. Esse crescimento reflete a importância de políticas públicas e de ações que visam conscientizar e apoiar as mães nessa jornada.
Nesta entrevista, realizada no Agosto Dourado, mês dedicado às ações que visam promover informações acerca da importância do aleitamento materno, perguntamos à Mayara Bezerra sobre as principais dúvidas relacionadas à amamentação. A pediatra também falou sobre a influência do marketing abusivo da indústria da fórmula e a falta de apoio político nesse assunto, que, segundo Mayara, é um problema de todos.
Imperatriz Notícias: A amamentação é considerada padrão-ouro na alimentação infantil, amplamente recomendada por profissionais da saúde e oferece uma série de vantagens para mãe e o bebê. Quais são os principais benefícios?
Mayara Bezerra: Os benefícios da amamentação começam com a mãe logo no pós-parto imediato. O útero dela contrai mais rápido, e assim diminui o sangramento. Ou seja, ela tem muito menos risco de qualquer hemorragia. Então, ela [a amamentação] é protetora para aquela mãe. E depois do pós-parto, ajuda a mãe a retomar o peso, na regulação hormonal, e ajuda a mãe na vida futura, como na questão da prevenção do câncer de mama. Enquanto isso, na proteção do bebê, durante o período neonatal, o leite materno é o mais nutritivo, previne o bebê de hipoglicemia, de doenças, infecções, porque passa anticorpos da mãe para o filho durante esse processo. Também previne na vida futura, contra doenças metabólicas, contra doenças hipertensivas, hipertensão, diabetes e doenças autoimunes.
IN: Existe tempo ideal de amamentação para que a criança obtenha todos os benefícios?
MB: O correto, pela Organização Mundial de Saúde, são seis meses exclusivos no peito. Seis meses no peito, sem nada, sem chá, sem água. O leite materno, ele tem tudo, tudo o que o bebê precisa. Então, você dá seis meses, só leite materno para esse bebê. Depois, você complementa com alimentação e vai ficar ali até no mínimo – quando eu falo “no mínimo”, é porque pode estender – dois anos.
IN: E você recomenda que se estenda o aleitamento após os dois anos?
MB: Sempre deve. Porque continua oferecendo esse presente, essa forma de passar a imunidade para o seu bebê. Quando são meus pacientes, eu sempre aconselho estender, por causa da escola, que é um período em que a criança vive mais gripada do que tudo. O leite materno, a gente fala que é como se estivesse dando vacina para a criança. Então, elas se recuperam melhor, elas têm menos chances de internação, elas têm menos diarreia. Não tem jeito, a criança fica mais saudável. Se a mulher quiser, puder e tiver a intenção de ter esse filho mais saudável, ela deve, sim, levar mais do que dois anos. Inclusive, os estudos falam que até no mínimo dois anos de aleitamento já diminui a mortalidade infantil consideravelmente.
IN: Há mais de 70 anos, costumava-se recomendar um horário rígido para amamentar. Havia duas opções principais: dez minutos a cada três horas (escola francesa) ou dez minutos a cada quatro horas (escola alemã). Atualmente, esses conceitos não são mais aceitos na medicina. Explique o que seria a “livre demanda”.
MB: No tempo da mamada, o ideal é que o bebê mame em seio materno livre demanda, que é sempre que o bebê solicita. A gente ensina para a mãe os sinais dele de inquietação e fome. Quando a mãe identifica, ela já coloca o bebê no seio. Então, assim, não existe essa regra de ficar de duas em duas horas, não. Quem vai te guiar é o teu bebê. E aí, é muito pessoal. Tem bebê que mama mais, e tem os que mamam menos. Lembrando que toda vez que vai ao peito, não necessariamente é porque ele quer leite. Ali ele também vai encontrar aconchego. Muitas vezes ele pede como se fosse colo. É só para ficar ali recebendo aquele prazer, aquele aconchego, calor materno mesmo. Aí é pessoal de bebê para bebê.
IN: Antes de nos aprofundarmos em questões como fórmulas e produtos da indústria, é importante entender se há variações no leite produzido por diferentes mães. A composição do leite materno pode variar conforme uma série de fatores, como a fase da lactação, a dieta da mãe e até mesmo a hora do dia. Essa diversidade levanta a questão: existe diferença entre um leite materno e outro?
MB: Sempre. A gente fala na medicina que o leite materno é um alimento indivíduo específico. Então, toda mãe vai produzir o leite para aquele bebê. Não tem como o leite de uma mãe A ser perfeito para um bebê que é C. A mãe A vai ter o leite perfeito para o bebê A, e assim sucessivamente. Ou seja, a mãe de um prematuro, o corpo dela sabe que ela pariu um prematuro. Ele [o corpo] vai fazer um leite proporcional para aquele prematuro. Tipo um leite com mais caloria, um leite com maior proteína. O corpo da mãe sabe quando o bebê está doente, quando o bebê está passando por um processo infeccioso viral ou de bactéria, consegue mandar essa informação através dos receptores do seio para o cérebro da mãe e ela produz um leite com maior número de anticorpos para aquele agente específico. Além disso, tem componentes que atuam no neurodesenvolvimento da criança, principalmente nos primeiros dois anos. Então, por exemplo, por mais que a indústria tente imitar, ela não consegue ainda desvendar, vamos dizer assim, todos os mistérios que compõem o leite materno.
IN: Agora, por falar em indústria, vamos aproveitar para citar os dificultadores da amamentação. Além da falta de conhecimento sobre a amamentação, além de problemas como anatomia e inflamações, esse fator mercadológico acaba influenciando de que forma na experiência do aleitamento?
MB: Tem um marketing muito abusivo mesmo de fórmulas, de bicos e chupetas, que acaba minando a confiança da mãe. Então, é sempre colocado pela indústria da fórmula como se o leite da mãe não fosse suficiente. E isso é vendido, assim, muito nas entrelinhas, entendeu? Depois de muita luta, hoje tem lei. A Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras, que, de certa forma, blindou a mãe disso, principalmente nas maternidades públicas, nos meios de massa, principalmente na televisão. Você não vê mais comercial de fórmula, de chupeta, porque a NBCAL não permite, entendeu? Para a mãe não ficar sendo invadida. Ela já está naquele momento frágil do puerpério. Porém, agora, a indústria da fórmula e desses apetrechos usa muito a rede social, que a gente sabe que não é regularizada, não tem essas regularizações. Então, ela [indústria da fórmula] consegue, por ali também, estar adentrando na vida dessas mulheres, entendeu?
IN: Também tem as influenciadoras.
MB: Pois é, elas agem muito… Não sei, às vezes se de forma consciente, de forma inconsciente. Mas é isso, as empresas mandam para as mães, para as blogueiras, e elas mostram para as seguidoras como usar, como o bebê delas está bem, e aí, normalmente, a seguidora fica “será que o meu bebê está bem?”. Ou então, por exemplo, a indústria influencia a blogueira a botar bico. A blogueira, de certa forma, é influenciada, porque ganhou. Aí quando perde a amamentação, não fica claro para aquela mãe, que tinha esse risco.
IN: Você falou anteriormente sobre o momento frágil do puerpério. Muitas vezes chamado de “resguardo”, esse é um período de mudanças físicas e emocionais que as mães vivenciam após o parto. Qual a importância de uma rede de apoio nesse momento?
MB: A gente sabe que a mulher para amamentar, ela precisa de um apoio, um apoio familiar mesmo, no sentido de que é muito pesado. Tem estudos que falam que o gasto calórico é como se você estivesse correndo uma maratona. Então, assim, imagina você ter que amamentar, cuidar de outros não sei quantos filhos, fazer comida… tem mulheres que ainda precisam fazer comida para marido, lavar roupa, deixar a casa “um brinco”. Então, acaba que elas desistem, porque elas não conseguem. O ideal é enxergar que a amamentação é responsabilidade de todo mundo.
IN: Nesse sentido, seria interessante ampliar as políticas públicas vigentes atualmente?
MB: Eu sempre falei isso, é muito injusto a gente pedir seis meses de aleitamento materno exclusivo e em livre demanda, quando a gente dá para a maioria das mulheres CLT quatro meses de licença de maternidade. Além disso, pouquíssimas creches têm essa política pública de oferecimento de leite materno. Já existe, mas não são todas as creches que dão a possibilidade da mãe deixar o seu leite e o bebê receber de forma adequada, que não é na mamadeira, entendeu? Então, assim, essa política de apoio à amamentação tem que ser pública também.
IN: Muitas mães acham que não vão conseguir amamentar e desistem logo no início do processo. Outras acreditam que não têm leite suficiente ou que as fissuras nos seios tornam esse ato o mais doloroso. Quando a mãe enfrenta dificuldades para amamentar onde ela pode buscar ajuda?
MB: O sistema público de saúde protege mais a amamentação. Então, quando você está no sistema público, já de praxe é muito raro você não sair com a amamentação bem estabelecida. Porque é quase que critério de alta. Já começa por aí. Mas aqui na cidade existe o banco de leite [fica localizado na Maternidade de Alto Risco de Imperatriz, rua Coriolano Milhomem], que é um recurso também do sistema público, que é um serviço bem especializado. Para manejar tanto a amamentação como as complicações que possam surgir. Então, quando a mãe tem fissura mamária, mastite, às vezes a mãe tem ingurgitamento mamário, abscessos… Sempre o banco de leite está ali para te abraçar e dar todo o suporte. Além de receber as doações, tratar esse leite e disponibilizar para os outros bebês, ele também maneja todas essas mães que têm dificuldade.
IN: O Método Canguru é dado como uma política de baixo custo que tem como benefícios o aumento do vínculo mãe-filho e o estímulo ao aleitamento materno. Como tutora desse método, pode explicar detalhadamente por que ele contribui para o sucesso da amamentação, especialmente na prematuridade?
MB: O método canguru, mais que um método, ele é uma política também, uma política de saúde pública. Uma das coisas que sempre compromete a amamentação é a separação da mãe do bebê. Então, o canguru, se fosse para dar um resumo, ele quer trazer essa mãe para a unidade neonatal. Quando você traz a mãe para a unidade neonatal, a chance de aleitamento dispara. Porque, fisiologicamente, aquele estímulo de ver o bebê, ordenhar o leite ali do lado já funciona para o cérebro dela. E, também, quando você realiza a posição canguru, que é aquela posição do bebê sobre o colo, o contato pele a pele entre a mãe e o bebê. Esse estímulo, além de aumentar a produção de leite dela, ainda estimula o bebê a entender melhor o que ele tem que fazer, que é sugar. E, assim, vai se formando um ciclo. Ele suga, aumenta a produção. Ele suga mais, aumenta a produção. As coisas vão engrenando. A gente foi vendo que, botando eles dois juntos, o que é natural volta a acontecer. Uma cesárea para a prematuridade, ela é uma intervenção. E, aí, a gente tenta buscar o fisiológico de novo.
IN: Fica claro que a sociedade, incluindo parceiros, familiares e amigos, desempenha um papel crucial nesse processo, oferecendo suporte prático e emocional. Diante disso, como esses grupos podem contribuir para facilitar e incentivar o aleitamento materno?
MB: O ideal é entender que a amamentação não é da mulher. Acho que esse pode ser o começo. Entender que a mulher se disponibiliza para alimentar um bebê, mas que a saúde daquele bebê é de responsabilidade de toda uma sociedade. Se começarem a olhar dessa forma, já é um primeiro passo. Você entendendo essa responsabilidade, consegue dar suporte para a mulher no sentido de ajudá-la com, sei lá, os afazeres domésticos. Ou quando a mãe estuda, disponibilizar de alguma forma que ela consiga pagar em outro momento as tarefas. A licença maternidade, no geral, ela já garante isso. Inclusive, a gente sempre orienta que quando a mãe tem uma licença, ela pode usar também em escola, faculdade. Só que a licença é por quatro meses, não por seis. Então, também precisamos de gente com maior intenção política de olhar para essas mães, poder fazer melhores leis. A sociedade deve votar em pessoas que têm engajamento nessa área, né? Eu acho que esse aí seria o maior apoio que elas [mães] poderiam ter.