Maria Querobina da Silva Neta: Resistência, mobilização e o futuro das Quebradeiras de Coco

Repórteres: Renata Sousa e Rita Maria

Maria Querobina no museu Casa Branca, localizado no povoado Vila Conceição I. Foto: Renata Sousa

A decisão de se dedicar ao ativismo e à luta pelos direitos das quebradeiras de coco babaçu moldou a vida de Maria Querobina da Silva Neta, 78 anos. Residente há 37 anos no assentamento Vila Conceição I, a 37 quilômetros de Imperatriz, Maria nasceu no povoado Olho d’Água do Tolentino, no município de Santo Antônio dos Lopes (MA). Sua trajetória é um exemplo de resistência e mobilização, marcada por uma profunda dedicação à sua comunidade.

Desde 1983, Maria atua como membro do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Imperatriz e se destaca como uma liderança camponesa no Maranhão. Ela é uma figura central no Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), que abrange Maranhão, Tocantins, Pará e Piauí, e que tem uma produção anual de cerca de cinco mil toneladas de amêndoas de coco quebradas. Sua vida pessoal também é repleta de desafios: mãe de quatro filhas e avó, Maria enfrentou a tarefa de criar suas filhas sozinha após se divorciar, sempre mantendo seu compromisso com os movimentos sindicais.

 

Placa da antiga sede do MIQCB, na Vila Conceição I. Foto: Renata Sousa.

A militância de Maria Querobina começou na Igreja Católica Apostólica Romana, onde se envolveu com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Esse engajamento religioso foi fundamental para desenvolver sua liderança e seu compromisso com a justiça social. Há 41 anos, ela realiza trabalhos em várias comunidades, mobilizando pessoas para lutar pelos seus direitos.

Além de seu ativismo, Maria foi objeto de pesquisa do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA), da UEMA, com um estudo escrito pelo pesquisador CNPq, Alfredo Wagner Berno de Almeida. Este projeto documenta as experiências de luta e as reivindicações de direitos territoriais das comunidades tradicionais. Em nossa entrevista, Maria compartilha como a combinação de suas diversas identidades e experiências fortalece sua luta pelos direitos das quebradeiras e pela justiça social. Ela reflete sobre as batalhas enfrentadas e os avanços alcançados em sua contínua busca por melhores condições e reconhecimento para sua comunidade, e também discute quem assumirá sua liderança quando ela não puder mais atuar.

Imperatriz Notícias: A senhora por muito tempo ficou à frente dos movimentos eclesiais de base, como aconteceu esse deslocamento da missão religiosa para a militância política sindical?

Maria Querobina da Silva Neta: Quando a gente estava participando só da vida religiosa, no caso, a gente participou das Cebs (Comunidades Eclesiais de Base), participamos de grupos, como grupo de casal, terceira idade … Eles colaboram muito para que a gente visse a vida política. Como por exemplo, na época que eu estava nas CEBs, a gente começou a se perguntar: “O que é mesmo o sindicato?” É uma das coisas que a gente nunca se desliga, da vida religiosa para a vida política-social. 

IN: Certo, hoje a senhora continua participando. Mas, a senhora continua participando como liderança, de algum movimento, ou a senhora só dá esse apoio para igreja?

MQSN: Não. Hoje eu só participo. Eu, hoje, não estou liderando nenhum grupo na igreja.

IN: Você ainda quebra coco ou apenas atua no movimento? 

MQSN: Tenho uns três anos que eu não quebro, porque, adoeci de uma hérnia. Como foi muito complicada a cirurgia, não podia fazer esforço. Por que se ela voltasse, era perigoso.

IN: Por que a senhora decidiu entrar no movimento sindical?

MQSN: A gente decidiu entrar por conta de muita coisa. Na época, a gente, as mulheres, no período que eu entrei para vida do movimento sindical, as mulheres não votavam e nem eram votadas. As mulheres não eram associadas ao sindicato. Quem eram associados, eram só os homens. As mulheres tinham só uma carteirinha de dependente. E a gente descobriu que, no trabalho, a gente era “em pé de igualdade”. Então, nós também vamos ajudar a decidir os rumos desse movimento, porque a gente é trabalhadora também. 

IN: A senhora é uma defensora dos trabalhadores rurais e também das quebradeiras de coco babaçu. Como está a situação dessas mulheres que vivem do extrativismo, especificamente do babaçu?

MQSN: Elas não estão muito bem, por conta que, a sociedade, a tecnologia, avançou muito. As mulheres daquele período não liam e nem escreviam. Não sabia ler. E os filhos começaram a estudar, porque, começou a ter facilidade de colégio perto das moradias, perto de casa, e os meninos começaram a estudar. E o maior problema hoje é que a juventude, na vida da Agricultura Familiar, participa muito pouco. Muito pouquíssimo, mesmo. E, principalmente, as quebradeiras de coco. As meninas não querem quebrar coco.  Elas querem partir para uma outra coisa. É ser artesã, é ser uma profissional de qualquer outra coisa. Mas aquela vida, para essa juventude de hoje, é muito pesada. Para eles não interessa dar continuidade ao que a gente fazia, na época da nossa juventude. Os jovens de hoje não querem. E mesmo, a tecnologia foi de uma forma, que hoje, o celular ensina tudo. Ensina tudo, menos a agricultura familiar.

IN: Porque as palmeiras do babaçu estão dentro das propriedades privadas?

MQSN: Na verdade, a terra foi toda concentrada na mão de poucos. Antes, na minha adolescência, tu fazias roça onde tu querias, botava a roça aqui esse ano, amanhã ou outro ano, tu botavas em outro canto. E ali, a mulher também tinha a liberdade de pegar o coco onde ela queria. Era do jeito da roça, você fazia onde você achava que ali dava certo para você fazer. E daí, começou a época que aumentou a concentração de terra na mão de poucos. Aqui no Maranhão, por exemplo, foi na década de 51 até 70, foi um período da maior concentração de terra na mão de poucos. O pessoal que começou a avançar o desenvolvimento da pecuária no estado. Foi adquirida muita terra, para botar muito gado.

IN: Isso prejudicou o extrativismo?

MQSN: Prejudicou a agricultura familiar como toda. Prejudicou muita gente do estado, elas foram embora para outros estados. Como no caso do Pará. No Pará, eu acho que tem cidades que o pessoal é maranhense. Eles se desgostaram, todo mundo. Naquele período foi vendido terra por… Como que chamava aquela correspondência? Que eu não sei nem se ela ainda existe mais.

IN: Telegrama?

MQSN: Telegrama! Assim como a Vila Conceição, que nós ocupamos, tinha um dono dela que era da Bahia, e ele nunca tinha pisado aqui, negociava por telegrama. Tinha outro dono dela que era do Pernambuco, e ele também nunca tinha pisado aqui. Era um grupo de três, eram donos da Vila da Conceição, e nunca pisaram aqui. Assim os outros territórios também, não foi diferente.

IN: Como a senhora avalia essa situação?

MQSN: Eu acho que foi muito péssima. Foi muito péssima. A gente fazia a roça, e quando você estava na colheita, chegava uma tropa de “animal” atrás da renda, e você nem sabia que você estava trabalhando pra alguém, na terra de alguém. Foi muito absurdo isso. Morreu muita gente naquele período, muito trabalhador, dentro das roças, no pagamento de renda que você não sabia pra quem você estava pagando. Tinha muita discussão. “Não, eu não botei roça na terra de ninguém”. “Não, senhor. Essa terra aqui é minha!”. Então, foi muito cruel. Foi uma “grilagem branca”, chamada. 

IN: Comente alguma perseguição que você já sofreu por defender as causas do movimento sindical.

MQSN: Olha, teve umas que foram muito pesadas. Na época da ocupação da São Jorge foi muito pesado, porque o moço era dono da área lá. Ele tinha umas confusões fora, que a gente não sabia, e viemos saber na morte dele. Foi na morte dele, que nós viemos saber da grande confusão que ele tinha no garimpo da Serra Pelada, com um chefe de lá. Ele tinha essa confusão, que sobrou para os acampados, para o acampamento. Aonde ele estava ainda perseguindo o pessoal que tinha ocupado a área que era dele. Nesse período, foi muito perseguido. E ainda fizeram emboscadas pra gente, mas, graças a Deus, não pegou. 

IN: Achavam que vocês eram incentivadores?

MQSN: Achava que a gente era incentivador. Mas, a morte não foi por parte do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Veio de fora. Depois de muito tempo, foi que a gente ficou sabendo.

IN: Existe algum projeto para garantir que as quebradeiras de coco continuem tendo acesso aos babaçuais?

MQSN: Existem vários projetos de acesso livre. Mas, como a terra é dos grandes proprietários, que tem condições, nós ainda não conseguimos dizer: “Naquela área ali, as mulheres podem entrar, porque tem um projeto de acesso livre aos babaçuais”. E existem, projetos que é dado entrada na câmara de vereadores, o prefeito sanciona, e existem essas leis de acesso livre. Mas, não são cumpridos.

IN: Em novembro de 2013, houve o movimento Diálogos pelo Maranhão na Região Tocantina. Onde ouviram as reivindicações das quebradeiras de coco e também dos agricultores, pecuaristas, movimentos religiosos, lideranças políticas e populares. Agora, 10 anos depois, houve respostas a essas reivindicações pedidas?

MQSN: Não, até hoje. Foi um encontro de parceria. A gente trata como parceiros. E nessa reivindicação, tinha juiz, tinha desembargado. Tinha muita gente famosa, que poderia fazer valer as leis. Mas, até hoje, não tem essa parceria. Essa parceria nunca foi obedecida, pelo lado dos fazendeiros.

IN: Na sua visão e experiência como funciona a participação das mulheres nos movimentos sindicais?

MQSN: Quando eu comecei a participar da vida dos movimentos sociais, as minhas meninas eram pequenas e eu era casada. E foi uma das coisas que atrapalhou demais. Por isso que é muito perigoso, porque, se você ver o movimento sindical, a maioria das mulheres que dirigem, elas não têm um companheiro. E isso é muito perigoso, porque isso é uma das coisas que a gente não quer. É “a família é acima de tudo”. Eu às vezes parava no tempo e ficava me perguntando: “Será que vai continuar desse jeito? As mulheres sem ter opinião própria? Ela tem que continuar pensando pela cabeça dos outros?”. Isso é muito grave. E ainda hoje, isso continua muito forte no movimento.

IN: Você fala essa questão de “perigo”, porque os homens não aceitam que as mulheres participem dos movimentos?

MQSN: É.  É verdade, os homens não aceitam. Porque, para você tá no movimento social, por exemplo, hoje, meio-dia eu estou aqui. Mas, de repente, alguém liga para mim: “É necessário você vir aqui, por isso, por aquilo”. E aí, a mulher vai e cai fora. Porque ela tem aquela convicção de colaborar. Mas, o companheiro não aceita essa vida pra ela. Isso é uma questão de machismo com certeza, ainda é muito grande, é muito forte, principalmente na nossa categoria, de trabalhador e trabalhadora rural. E é por isso, que as mulheres que estão a frente, boa parte delas, não tem companheiro. Então,  tem que estudar muito essa questão do companheiro, do machismo. Isso é uma das coisas que sempre me deixou preocupada. É por isso que no meu livro, eu botei assim: Eu sou uma mulher praticamente livre. Essa frase eu não sei como ela nasceu assim, foi de repente. É “praticamente”, porque não é totalmente. Porque a gente tem filho, tem um compromisso em casa, tem o horário da igreja, que você tem que obedecer a aquele horário. Tem um bocado de “coisinha”, que te amarra, que tu não és “livre, livre”. Nós não temos um Brasil com essa liberdade total. É por isso que, às vezes, a gente mesmo freia, até para não escandalizar muitas coisas. Porque, é dessa forma.  Eu botei “praticamente” porque, não sou totalmente livre, sempre tem alguma outra coisa ali que a gente obedece, e que às vezes empata de você fazer o que tu deverias fazer. 

IN: E quem irá assumir o posto de liderança que a senhora exerce hoje, quando a senhora não puder mais atuar?

MQSN: A gente sempre pensa nisso. É por isso que a gente sempre bate na tecla, que tem que participar. Alguém tem que participar. Porque, quando a gente desaparecer, quem fica? Do meu povo mesmo, tem umas duas meninas que elas sempre me acompanham na participação da vida dos movimentos sociais. A Toinha, que ela é muito ativa nessa questão. E tem a Eli, que não mora aqui em Imperatriz, ela mora em Porto Franco, numa área de assentamento, ela é muito ativa para participar das coisas, ela dirige já a associação do assentamento. E das outras pessoas que a gente lida junto, tem algumas pessoas novas, que estão colaborando, estão participando e já são pessoas que ajudam a dirigir essas questões na vida dos movimentos sociais. Já tem gente nova, já tem herdeiros. Herdeiros da luta.