Para todos os dias: Renascer

Texto: Gislei Moura

Foto: Acervo pessoal Renascer Feminino

Dreyka, antes residente, hoje é coordenadora do Renascer Feminino

Começo da noite em Imperatriz, por volta das 19 horas, uma estrada deserta e empoeirada leva em direção ao Renascer Feminino. O céu, já escuro, anuncia o final de mais uma semana: é noite de sexta-feira. Do lado de dentro de um muro alto, é possível ouvir música, vozes e movimento, há vida lá dentro. Quem abre o portão é uma mulher loira e alta, com vestido estampado. De cara se nota que ela trabalha ali, seu jeito denota autoridade e respeito. Joacilane dos Santos, de 39 anos, conhecida como Jô, atende com um sorriso e logo se vai. Precisa orientar os afazeres do lugar.

Da porta, as vozes ganham rostos. Há mulheres para todos os lados. Baldes, vassouras, rodos, bacias… a casa está sendo limpa. Próxima à pia está Maria Pequena, uma senhora de 53 anos, que, com olhos curiosos, explica seu nome. “Tem muita Maria aqui, Maria Luiza, Maria Lúcia… como não tinha outro jeito, acharam por bem me chamar de Maria Pequena.” Enquanto espera que encham sua bacia, ela conta que é acolhida, se formará em dois meses e que estão fazendo uma limpeza “simples”, pois a faxina mesmo acontecerá no sábado pela manhã.

No Renascer Feminino, ser acolhida significa ter sido resgatada de situações de rua, vício em drogas ou prostituição. A casa, que abriga mulheres de diferentes idades, pertence ao Instituto Lugar de Ajuda e foi inaugurada em 2010, sob coordenação da Igreja Evangélica Nova Aliança, de Imperatriz. Lá, as residentes ficam por seis meses, tempo em que serão cuidadas, tratadas e treinadas para experimentar uma vida diferente após o tratamento.

Essas são as informações que a coordenadora, Dreyka Sousa, de 36 anos, passa durante uma primeira conversa com quem chega à sua sala. Ela, que também já foi acolhida, senta-se em uma mesa enquanto orienta algumas mulheres que estão no cômodo. Em primeiro momento, demonstra ser uma mulher séria, talvez até brava. Mas, bastam cinco minutos para notar o coração amoroso que ela possui. Fica evidente seu cuidado quando residentes chegam para pedir orientação sobre a Bíblia ou informações diversas. Sua história, mesmo que trágica, em alguns momentos é contada com felicidade se for para ajudar outras pessoas.

Passado triste

O envolvimento com drogas começou cedo na vida de Dreyka, aos 11 anos, por influência de amigos. “Eu conheci uma moça, que ela sempre ficava na minha casa, trabalhava com a gente. Às vezes minha mãe saía pra festa com meu pai, saía à noite né? E deixava ela dormindo conosco.” O primeiro contato foi num riacho perto de casa, na cidade maranhense de Caxias. “Ela tava fumando e eu já fumava cigarro, tentava experimentar e tudo. Eu vi ela fumando eu perguntei: ‘minha fia, tu fumando o que aí?’ E ela respondeu: ‘, fuma aqui pra tu ver como é bom’. Aí eu fumei, era maconha. Pronto, fiquei viciada até 29 anos de idade. 18 anos viciada em maconha”.

Além do uso de drogas, a coordenadora contou que viveu por anos se prostituindo em diferentes cidades e lugares, desde postos de gasolina a cabarés. Sofreu todo tipo de violência, incluindo estupros que não foram denunciados. Ao afirmar que essa vida não tem nada de fácil, ela se emocionou ao pensar em quem vive nesse submundo. “Eu fico triste, porque tem muitas pessoas que ainda vivem assim. Muitas pessoas. Oh, eu passo aqui em Imperatriz, ali perto da Cimento Nassau. Quantas vezes não me prostituí ali? Eu vejo do mesmo jeito, do mesmo jeito. Só não são mais as mesmas pessoas.”

Em meio a risos e lágrimas, Dreyka atende ao telefone, depois de ter recusado as várias chamadas da última hora. No dia seguinte é sua folga, então se prepara para sair. Do lado de fora de sua sala, os barulhos e movimentos cessaram. As alunas já estão em seus quartos e as monitoras do plantão organizam os últimos detalhes do dia. Uma delas, Edileuza Costa, de 53 anos, é a mais antiga na casa. Tímida, ela senta no assento verde da sala de convivência, perto da televisão, para contar o que tem vivido em tantos anos de dedicação à casa.

“Ele [Raimundo Nonato, pastor da Igreja] sentiu o desejo de abrir uma casa feminina por conta de uma menina que vivia na rua. Já tinha a casa pra homens e pra ela não tinha. Aí surgiu a ideia da casa”, explica Edileuza. O centro era chamado, inicialmente, de Casa de Rute. E abrigava mulheres em todas as condições, incluindo grávidas. Porém, com o passar dos anos foram feitas adequações, devido à dificuldade em conciliar os cuidados entre as alunas grávidas e as outras. Por isso, atualmente, a casa não recebe gestantes, mas sim mães solteiras, mulheres casadas, jovens, adultas, idosas.

Já na mesa da cozinha, rodeada pelo silêncio e com as luzes de fora apagadas, Edileuza se emociona ao relatar qual o diferencial do Renascer Feminino para outros centros de recuperação. “A gente ama. A diferença é amar elas, do jeito que elas são, do jeito que elas chegam.” Para ela, é um orgulho, apesar do trabalho difícil, cuidar das mulheres que chegam ali. E o aprendizado é constante, pois o relacionamento entre monitoras e alunas é quase familiar, tamanho o carinho com que são tratadas. Concluídas as tarefas e com todas em seus quartos, é hora de descansar.

Sábado agitado

O sábado começa cedo e animado. Às seis e meia o primeiro alarme chama para o despertar. Dentro do quarto, Jô se prepara para mais um dia com as meninas: “Quando é meu dia de plantão, gosto de começar com música.” O quarto, de paredes brancas, pequeno e com o conforto do ar-condicionado, pertence à monitora, que muitas residentes definem como “tratamento”. Para Jô, que também já foi acolhida, o apelido não soa mal. “Eu gosto quando uma de vocês chega na formatura e diz lá na frente: ‘Queria agradecer a Jô porque ela foi o meu tratamento!’, porque quando escuto isso sei que fiz meu trabalho”.

São dez para as sete da manhã e o segundo alarme soa, informando que todas devem ir para a sala de convivência. A pequena reunião indica a primeira atividade daquele dia: devocional em grupo. O devocional é um momento de leitura bíblica e de compartilhar da palavra, sempre liderado por uma das monitoras. Escolhida por Jô, Maria Luíza, de 29 anos, é a acolhida que vai dirigir o louvor, cantando três hinos da Harpa Cristã. Nesse momento, algumas residentes estão bem perto, juntas em um quase círculo e outras estão um pouco mais distantes, nas mesas fora do ambiente da televisão e do sofá.

Logo após o louvor, uma outra acolhida, Andreia, de 32 anos, faz a leitura de Gênesis 3, versículos de 1 ao 7. O trecho, que fala da queda de Adão e Eva, ilustra o caminho que muitas daquelas mulheres fizeram: o de ser influenciada por amigos. É com base nisso que Jô faz suas considerações. Por meio de representações e testemunhos, ela orienta as residentes a ajudarem umas às outras e sempre proferirem palavras de incentivo, além de não dar ouvidos a críticas e pessoas que possam ser negativas no processo de recuperação.

Ao fim da reunião, a monitora informa as tarefas do dia, deixando claro que tudo deve ser feito até o horário de almoço. Então, todas se dirigem para o café da manhã, cada uma com seus utensílios previamente identificados. A refeição é completa, fruta, café com leite, cuscuz e pão. Tudo preparado pela monitora Edileuza. Na mesa, as residentes falam de diversos assuntos, inclusive vaidade feminina, como a preocupação com o peso ou o desejo de colocar tranças nos cabelos.

Aos poucos, o espaço vai se esvaziando. É hora do “a sós com Deus”, momento no qual cada uma delas tira um tempo para ler a Bíblia, orar, louvar e conversar com Deus. As mulheres dividem-se nos vários lugares da casa, a maioria na parte externa. Algumas ficam no templo, outras na cozinha, ou ainda perto das máquinas de costura. No ambiente, ouve-se apenas o som da música que toca ao fundo. Depois de uma hora, cada acolhida inicia seu afazer. A faxina começa, como havia anunciado Maria Pequena no dia anterior.

Na cozinha, Maria Luíza já está a todo vapor, pois é uma das cozinheiras da semana. Ela começa descascando os alhos e lavando as louças. Alegre, cantarola o tempo todo. Está perto de se formar, dentro de um mês termina seu tratamento. Luíza, como gosta de ser chamada, conta, ao mesmo tempo em que arruma a cozinha, que começou a usar drogas por influência de seu primeiro marido, que era hippie. Viveu por anos nas ruas, viajando de um lado para outro, teve dois casamentos, sendo que o segundo marido faz parte dos homens que são cuidados na outra casa de recuperação, o Renascer Masculino.

Com uma estrela tatuada na testa, Maria Luíza ri ao explicar como ganhou a tatuagem. “Mulher, isso aqui foi eu doida em Fortaleza. Mermã, na hora nem doeu, mas no outro dia que eu olhei esse negócio na minha cara… meu Deus do céu!.” Para Luíza, o que a impulsiona a vencer o vício é o desejo de se reunir com sua filha, que está sob os cuidados do Conselho Tutelar. Por isso faz planos de ter uma casa e criá-la junto com seu marido, assim que se formar. “Eu fico sonhando com a minha casa e acordando com minha filha do lado”.

Andreia chega à cozinha para comandar as panelas. Disposta a dizer como chegou ao Renascer, ela brinca ao tentar conversar e trabalhar ao mesmo tempo. “Aqui é assim: cozinha sob pressão.” Seu motivo foi o álcool, droga lícita no Brasil e que pode ser encontrada com muita facilidade. Levada a beber desde os 15 anos, devido ao luto pela morte do pai, ela conta que viveu dias muito ruins nas ruas. Prostituiu-se, foi presa algumas vezes, perdeu uma filha. Apesar de tudo, é grata por nunca ter sido violentada, o que se deve ao fato de “sempre lutar pra não sofrer violência”, como ela mesma diz.

Enquanto escalda o frango, rala o repolho e tempera o feijão, Andreia ressalta que o álcool é a droga mais perigosa, por estar disponível em qualquer lugar. “O álcool é fácil de conseguir. A droga, se você não tiver o dinheiro, você vai roubar. O álcool com R$ 1 você compra.” Com emoção, ela revela que seu sonho é construir uma vida diferente quando sair, e que ali dentro, ela descobriu seu real valor. “Eu penso em trabalhar, viver minha vida, ser feliz, continuar os estudos e viver. E quero ter minha casa, meu sonho é ter minha casa”.

Da janela da cozinha, é possível ver as alunas fazendo coisas corriqueiras, como cuidar dos cabelos e arrumar as unhas. Maria Pequena dança ao som de reggae, enquanto espera sua “modelo” experimentar o vestido que ela costurou. Com tanta história sendo contada, o tempo voa como num piscar de olhos. O alarme soa, dessa vez anunciando o almoço. Antes de começar, uma das monitoras organiza as mulheres para recitarem versículos. Todos os dias, elas têm que decorar um versículo para falar antes da refeição.

A hora do “rango” é um momento de descontração, a mesa é servida com macarrão, farofa, frango, arroz, feijão, salada e frutas. Algumas mulheres conversam, outras comem rápido e em silêncio. Há elogios sobre a comida bem feita. Conforme os minutos passam e os pratos vão sendo esvaziados, cada uma cuida de algo. Recolher cadeiras, lavar as louças, juntar os restos de comida. Então, aos poucos a casa vai ficando silenciosa, as residentes vão para seus quartos descansar, o sono da tarde é lei.

Lar acolhedor

No quarto, Ana Cristina, de 20 anos, está deitada na cama. Ela não gosta de dormir à tarde, diz que fica com insônia se o fizer. Animada, ela mostra os presentes que ganhou no Encontro com Deus, retiro espiritual realizado pela Igreja. Enquanto conversa, continua um trabalho de crochê que a colega de quarto estava fazendo. Ana, que é a mais nova da casa, conta, com lágrimas nos olhos, que entrou logo após o nascimento do filho, que, prematuro, não aguentou e faleceu. “Teve que intubar, prematuro extremo. Nos primeiros dias ele tava reagindo bem, aí ele ficava aquecido, como se tivesse na minha barriga, aquecidim. Mas a doutora disse que ele não tava mais reagindo e a última coisa era o coração. Não fiz pré-natal, só de beber mesmo e usar droga.”

Há três meses em tratamento, o que levou Ana Cristina para lá foi a dependência em crack e álcool. Ansiosa pela “visita de confiança”, como as residentes chamam o período em que retornam às suas famílias na metade do tratamento, ela revela que não era “gente” antes de ir para a recuperação, mas que já mudou. “Não, não, tenho mais essa valentia não. É bom ter mansidão”.

Às 15 horas a sirene toca outra vez, o cochilo da tarde terminou. Uma monitora convoca todas as mulheres para o ensaio do coral. Elas ensaiam duas canções para um jantar que irá acontecer. Enquanto cantam, mesmo que não tão afinadas, é possível sentir a emoção que toma conta do lugar, como se as palavras recitadas tornassem mais fácil vencer aqueles dias. Assim, com o final do ensaio, todas continuam reunidas no templo, conversando, fazendo crochê, arrumando as unhas.

Aos poucos, o sol começa a se pôr, finalizando mais um dia na casa que abriga 18 mulheres, entre 20 e 53 anos, de diferentes lugares do Maranhão, sendo a maioria de fora de Imperatriz. Todas com as suas histórias variadas, seus diversos sonhos, mas um único desejo: renascer.